Saí do hospital com o certificado de óbito do meu filho. O papel parecia pesado na minha mão.
O céu de Lisboa estava cinzento, a ameaçar chuva, tal como no dia em que perdi o meu bebé.
Liguei a televisão do café. O noticiário passava uma reportagem sobre o desabamento do túnel no mês passado. "Herói dos Bombeiros, Pedro, Salva Vítima Isolada em Ato de Bravura".
A "vítima isolada" era a sua ex-namorada, Sofia.
Eu era a sua esposa, grávida de oito meses, presa nos escombros com a minha mãe ferida.
Bebi o meu café amargo. Era altura de acabar com isto.
Disquei o número de Pedro. O telefone chamou, uma, duas, três vezes. Finalmente, ele atendeu, a sua voz cheia de impaciência.
"Que foi agora, Ana? Estou ocupado. A Sofia está a ter um ataque de pânico outra vez por causa do trauma, e o cão dela não come há dias. Estou a tentar ajudá-la."
"Pedro," a voz frágil de Sofia soou ao fundo, "muito obrigada. Sem ti, não sei o que faria."
"Não te preocupes, Sofia," a voz de Pedro suavizou-se instantaneamente, "estou aqui."
Um sorriso amargo formou-se nos meus lábios. Ele nunca usou aquele tom comigo.
"Pedro, quero o divórcio."
Houve um silêncio, depois a sua raiva explodiu através do telefone.
"Divórcio? Estás a brincar? Só porque ajudei a Sofia? Ela estava traumatizada, Ana! Qual é o teu problema? Não tens um pingo de compaixão?"
"E a minha mãe, Pedro? E o nosso filho?"
"O que tem a tua mãe? Ela está bem, não está? E o bebé... foi um acidente trágico. Achas que eu também não sofro? Mas a Sofia precisa de mim agora! Ela está sozinha, a vida dela é um inferno!"
A vida dela é um inferno? E a minha? Eu perdi o meu filho. O nosso filho.
As lágrimas ameaçaram cair, mas eu engoli-as. Não lhe daria essa satisfação.
"Para de ser egoísta, Ana! Estás a usar a morte do nosso filho para me manipular! Pensa no que estás a fazer!"
Ele desligou.
Tentei ligar de volta. Caixa de correio. Ele tinha-me bloqueado.
Olhei para a minha barriga, agora vazia. O meu corpo ainda se lembrava do peso, dos pontapés. Agora, só havia um vazio.
Ele tinha razão numa coisa. Se o meu filho estivesse vivo, eu aguentaria tudo por ele. Teria perdoado.
Mas ele não estava. A única coisa que me prendia a Pedro tinha desaparecido.
E ele não salvou a Sofia "pelo caminho". O apartamento dela ficava do outro lado da cidade, longe do desabamento.
Ele escolheu. Ele não me escolheu a mim. Nem ao seu filho.
Ele ignorou as minhas dezoito chamadas dos escombros. Dezoito. Uma para cada hora que esperei, a sangrar, a rezar para que ele viesse.
Quando finalmente me encontraram, a primeira coisa que ouvi dos paramédicos foi que o meu marido era um herói.
Que piada cruel.
O meu telemóvel vibrou. Era a minha sogra, a mãe do Pedro. Atendi.
"Ana! Que história é essa de divórcio? O Pedro acabou de me ligar, furioso! Como podes ser tão insensível? O rapaz está a passar por um momento difícil, a tentar ajudar uma alma pobre, e tu fazes-lhe isto? Não tens vergonha?"