A minha perna direita doía. Um som de osso partido.
O meu carro estava esmagado contra uma árvore na berma da estrada, o motor a fumegar sob a chuva torrencial.
Tentei alcançar o meu telemóvel, mas uma dor aguda atravessou-me a perna e eu gritei.
Estava presa.
O meu marido, Pedro, devia estar quase a chegar. Eu tinha-lhe ligado há vinte minutos.
"Estou a cinco minutos, meu amor. Não te mexas."
Foi o que ele disse.
Vinte minutos pareceram uma eternidade. A chuva batia no tejadilho amolgado, um som de tambor constante e assustador.
O meu telemóvel tocou. Era ele. Senti um alívio imenso.
"Pedro! Onde estás? A minha perna, acho que está partida."
A sua voz soou distante, abafada pelo barulho de pessoas a falar ao fundo.
"Clara, desculpa. Tive de fazer um desvio."
"Um desvio? Pedro, eu bati com o carro! Preciso de ajuda!"
"Eu sei, eu sei. Mas a Sofia... ela ligou-me em pânico. A casa dela está a inundar. O cão dela, o Max, ficou preso na cave. Ela estava a chorar tanto."
Sofia. A sua ex-namorada. A sua "melhor amiga".
Um frio percorreu-me, mais gelado que a chuva lá fora.
"E eu, Pedro? E eu? Estou presa num carro destruído, com uma perna partida, e tu foste salvar o cão da tua ex?"
"Não fales assim, Clara. Não é justo. A Sofia não tem mais ninguém. Tu estás bem, os bombeiros já devem estar a caminho. Liguei-lhes por ti."
Ele não me ligou. Eu sabia que não. Se tivesse ligado, já estariam aqui.
"Tu prometeste", sussurrei, a voz a falhar. "Disseste que estavas a cinco minutos."
"As coisas mudam. A Sofia precisava de mim. Tenta entender. Ela estava desesperada. A água já lhe chegava aos joelhos."
A sua voz era calma. Razoável. Como se estivesse a explicar uma simples mudança de planos para o jantar, não a abandonar a sua mulher ferida numa estrada deserta.
"E o nosso filho?" perguntei, a mão a ir instintivamente para a minha barriga de oito meses. "Pensaste nele?"
Um silêncio pesado. Depois, um suspiro impaciente.
"Clara, não sejas dramática. É claro que pensei. É por isso que tens de ficar calma. O stress não faz bem ao bebé. Os paramédicos vão cuidar de vocês os dois."
Ele disse "vocês os dois" como se fosse uma obrigação, um item numa lista de tarefas.
"Pedro, vem buscar-me."
"Não posso. Estou a tirar a água da cave da Sofia. Vai demorar horas. Sê razoável."
A chamada terminou.
Ele desligou.
Olhei para a minha barriga. O nosso filho. O filho que ele queria tanto.
Lágrimas misturaram-se com a água da chuva que pingava do teto do carro.
Não era drama. Era a realidade. A realidade de que, para o meu marido, o cão da ex-namorada era mais importante do que a sua mulher grávida e o seu filho por nascer.
A dor na minha perna era nada comparada com a dor no meu peito.