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A vida com Clara acontecia como a tinta escorrendo pela tela: sem mapa, sem explicação, mas cheia de propósito.
Noah, pela primeira vez em anos, começou a chegar atrasado aos plantões. Nada drástico, mas o suficiente para seus colegas notarem. Ele dizia que era o metrô, ou o trânsito na ponte, mas a verdade era outra. Era Clara. Sempre Clara. Pintando de camiseta larga com frases bordadas à mão. Comendo morango com mel em vez de jantar. Rindo de filmes antigos em voz alta, como se ninguém tivesse que dormir.
Era impossível calcular quanto tempo eles estavam juntos. Eles nunca definiram. Só aconteceu. Começou como curiosidade e virou presença. Silêncio. Rotina. Um tipo de amor que não fazia alarde, mas que se infiltrava por tudo.
Ela dizia:
- Você é todo "do começo ao fim". Eu sou "do meio em diante".
Ele respondia:
- Talvez seja por isso que a gente se encontra.
Certo dia, Clara chegou em seu ateliê e encontrou a janela aberta. O frio de novembro já começava a cortar o ar, mas havia um calor inesperado no ambiente: uma vela acesa, um bilhete em cima da bancada, e uma xícara de chá de hibisco ainda quente.
Ela pegou o papel com as pontas dos dedos sujas de tinta:
"Você sempre diz que a arte é feita do que sobra.
Eu sou o que sobrou de mim, depois de você."
- N.
Ela encostou na parede, fechou os olhos e sentiu as lágrimas chegando devagar, sem alarde, como quem reconhece um lar.
Clara começou a colecionar os bilhetes. Dobrou cada um com cuidado, guardando em uma caixa de madeira que antes abrigava pincéis. Chamava de "a nossa voz fora do corpo".
Alguns ela respondia colando atrás do espelho, outros deixava escondidos nos bolsos do jaleco de Noah, entre as páginas dos livros dele, ou até escritos com batom no vidro do box.
"Você diz pouco.
Mas quando diz, fico sem ar."
"Tem dias que te amo só com o olhar.
Porque qualquer palavra seria menos do que eu sinto."
"Se isso for sonho, não me acorde.
Se for verdade, que dure mais do que qualquer lembrança."
Uma noite, deitada no peito dele, Clara falou:
- Quando eu era criança, desenhava o mesmo rosto sem saber de quem era.
- E agora sabe?
Ela sorriu.
- Acho que era o seu.
Noah não respondeu. Só apertou os dedos dela entre os seus. Foi ali que percebeu: estava, de fato, inteiro com alguém. Pela primeira vez, não havia medo.
A relação deles era cheia de rituais pequenos. Um deles era o da "palavra do dia". Toda manhã, Clara escolhia uma palavra que definia o humor ou a energia dela, e colava em algum lugar visível: um espelho, a geladeira, o celular de Noah.
Brisa.
Vertigem.
Devaneio.
Raiz.
Fresta.
E ele respondia com outra palavra no fim do dia. Era uma dança silenciosa. Uma coreografia feita de letras.
Um dia ela colou "Fuga".
Ele respondeu com "Fica".
Foi também Clara quem o apresentou a coisas que ele nunca havia feito: andar descalço na rua, tomar banho de chuva sem reclamar, comer manga com casca, deitar no chão do ateliê com música alta e olhos fechados.
Ele ria dessas coisas. No começo. Depois, passou a esperá-las.
- Você me desacelera - ele disse, num desses dias em que a cidade parecia andar rápido demais.
- Você me ancora - ela respondeu, encostando a testa na dele. - Somos o oposto da pressa.
Na terceira vez que ele passou a noite no ateliê, ela ofereceu uma gaveta vazia.
- É oficial. Agora você mora aqui aos poucos.
Noah riu.
- Vou precisar de uma autorização assinada pra deixar minha escova de dente.
Ela fingiu pensar.
- Te dou a autorização... com uma condição.
- Qual?
- Que você me deixe te amar com pressa, quando eu quiser.
Ele não entendeu. Mas aceitou.
Noah estava aprendendo que o amor com Clara não era feito de promessas solenes, mas de momentos inteiros. Presentes. Sem garantias. Sem receio.
Na véspera de seu aniversário, Clara disse que não queria festa.
- Quero um dia com você. Só isso.
Ele a levou para um museu. Não o MET, nem o MoMA. Um pequeno espaço em Queens, escondido entre prédios e lojas de ferramentas. Lá dentro, quadros esquecidos, esculturas sem assinatura, e um silêncio bom.
No meio da visita, ela parou diante de uma escultura de mármore quebrada. Um busto feminino, sem nariz, com rachaduras por toda a lateral.
- Isso sou eu - ela disse.
- Por quê?
- Porque tô sempre inacabada. E ainda assim... sinto tudo.
Noah não disse nada. Pegou a mão dela. E colou um bilhete dobrado na base da escultura.
"Se for pra amar,
que seja assim:
mesmo com as rachaduras,
ou talvez, por causa delas."
- N.
Clara o beijou ali mesmo, com os olhos marejados e o coração fora do peito.
Eles não sabiam, mas estavam vivendo o meio de uma história que teria um fim brutal.
E talvez por isso - ou por alguma urgência do destino -, tudo entre eles parecia mais intenso. Como se o universo estivesse tentando esculpir lembranças antes do vazio.
Naquela mesma semana, ela pintou o retrato dele em aquarela. Não era literal. Os olhos eram uma mancha azul-marinha e os ombros pareciam parte do horizonte.
Chamou de "Início de Mim".
Ele ficou em silêncio por um tempo. Depois disse:
- Nunca me vi assim.
- Eu vejo. Mesmo quando você não consegue.
E foi ali, num entardecer qualquer de um domingo sem eventos, que ele sussurrou:
- Eu te amo.
Clara não respondeu de imediato. Só sorriu. Pegou um pincel. Escreveu no chão, com tinta vermelha, uma frase enorme que ocupava todo o canto do ateliê:
"Te amo também.
Mas com cor.
Com pressa.
E com tudo que pode desaparecer."