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Acordar ao lado de Clara era como entrar numa pintura ainda molhada.
Nada ali era definitivo. Nem a luz. Nem o silêncio. Nem os sentimentos.
Naquela manhã, Noah despertou com o som da chaleira apitando. Clara já estava de pé, enrolada numa manta azul-marinho, os cabelos presos no alto da cabeça, sem maquiagem, com um pincel entre os dentes.
- Bom dia, Dr. Bennett - disse, com a voz ainda sonolenta. - Você ronca levemente quando tá em paz.
Ele esfregou os olhos, rindo.
- E você fala frases absurdamente lindas antes do café.
Clara colocou uma caneca diante dele. Era uma das preferidas: branca, com respingos de tinta vermelha na lateral. Dentro, um bilhete dobrado.
"Bom dia.
Eu gosto de dormir com você como quem descansa o mundo.
E gosto de acordar com você como quem tem o mundo de volta."
Ele leu em silêncio e a puxou pela cintura, ainda sentado na cama.
- Você tem noção do que faz comigo?
- Tenho. E ainda assim continuo.
O apartamento era pequeno, mas carregava o mundo deles. O ateliê tomava metade da sala. A outra metade era tomada por plantas penduradas, livros empilhados no chão e bilhetes colados em lugares improváveis - atrás do micro-ondas, no interruptor da luz, dentro do armário do banheiro.
Noah também escrevia.
Ele começou tímido, sem o lirismo dela, mas com uma honestidade crua que só ele sabia ter.
Uma noite, depois de um plantão exaustivo, chegou e encontrou Clara dormindo no sofá, com uma tela inacabada ao lado. Havia tinta no rosto dela e um marcador aberto caído no chão. Ele não quis acordá-la. Só pegou um pedaço de papel e escreveu:
"Você me salva até quando não sabe que está me salvando.
Tô exausto. Mas você ainda é a parte boa de mim."
Dobrou e colocou entre os dedos dela, como se fosse uma flor.
Na manhã seguinte, Clara acordou com os olhos marejados e uma nova cor na paleta.
No fim daquela semana, foram juntos a uma pequena vernissage onde Leo apresentaria uma instalação. Era num galpão transformado em galeria, em Williamsburg - paredes de concreto, luzes baixas, taças de vinho barato e artistas de sobrancelha descolorida.
Clara usava um vestido simples, preto, com uma faixa vermelha na cintura. Noah estava mais deslocado que nunca, de camisa social e sapato limpo demais. Mas ela o puxava pela mão com a segurança de quem sabia que ele estava exatamente onde devia estar.
- Vocês são o contraste mais bonito da noite - comentou Leo, ao vê-los chegar. - O médico que opera cérebros e a artista que não dorme antes das duas da manhã.
- Nós funcionamos - Clara respondeu. - Porque nenhum dos dois tenta consertar o outro.
A exposição era sobre tempo. Leo havia criado um corredor com fios de cobre e pequenos relógios derretidos presos neles. Clara parou no meio da instalação e ficou imóvel.
- Isso me faz sentir o corpo todo - sussurrou.
- Medo ou beleza?
- Os dois. Como o amor.
Após a exposição, Leo os convidou para uma pizza e cerveja. Noah recusou, dizendo que tinha cirurgia cedo. Clara insistiu que ele fosse, mas entendeu. Beijou sua bochecha na calçada e prometeu voltar antes da meia-noite.
Enquanto voltava para casa, Noah recebeu uma mensagem dela:
"Amo quando você fica mesmo quando vai embora.
Sua ausência é menos ausente quando é por mim."
Ele leu e sorriu, mesmo sem responder.
Quando Clara chegou em casa naquela noite, havia um bilhete colado na porta:
"Você me faz querer voltar.
Toda vez."
E dentro do apartamento, mais um, preso ao abajur:
"Você me ensinou que o agora também pode ser morada.
Obrigado por me deixar morar aqui."
Ela riu sozinha, tirando os sapatos no corredor.
Era como ter um poema escondido em cada canto do mundo.
No domingo, Sol apareceu.
- Só vim trazer as aquarelas que a mamãe mandou. E ver se você ainda lembra da sua irmã - brincou, entrando sem pedir licença.
Clara abraçou Sol com força. A irmã mais velha sempre foi aquela presença que misturava carinho com crítica, cuidado com provocações.
- E esse é o famoso Noah? - perguntou, assim que ele apareceu na cozinha, de camiseta e cabelo molhado.
- Sou eu - ele respondeu, estendendo a mão.
Sol o analisou com os olhos de quem enxerga além.
- Você parece mais sensato do que eu esperava. Mas tudo bem. Clara sempre teve gosto esquisito pra homem.
Clara deu um leve empurrão na irmã.
- Sol é assim mesmo. O marido dela sobreviveu, então você também consegue.
Eles riram. Conversaram. Tomaram café. E por um momento, Noah teve a sensação de fazer parte de uma família, ainda que uma um pouco torta, mas genuína.
Na saída, Sol puxou Clara no corredor.
- Ele é diferente. No jeito que te olha. Como se estivesse prestes a dizer "cuida disso pra mim, é o que tenho de mais importante".
- Porque talvez eu seja - respondeu Clara.
Sol ficou em silêncio. Depois apertou os ombros da irmã.
- Só... vive isso direito. Porque o tempo não tem troco.
Naquela noite, antes de dormir, Clara e Noah deitaram lado a lado, com os corpos cansados e os corações cheios.
- Tem dias em que eu olho pra você e penso: "como fui viver tanto tempo sem isso?" - ela disse.
Ele virou de lado, encarando seus olhos escuros.
- E tem dias em que eu acordo e preciso lembrar que isso é real. Que você tá aqui. Que eu tenho mesmo esse privilégio.
Clara se aproximou e beijou sua testa.
- Então escreve pra mim.
- O quê?
- O que você sente quando acorda. Quando olha pra mim.
- E onde eu deixo?
- Num lugar improvável. Quero te encontrar sem saber que te procurei.
Noah sorriu.
Na manhã seguinte, ela encontrou o bilhete colado no filtro de café:
"Você me acorda mesmo quando eu já estou desperto.
Me ensina a ser inteiro em pedaços."
- N.