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O barulho da cafeteira sempre vinha antes do despertador.
Clara acordava primeiro. Sempre.
E nunca reclamava.
Naquela manhã, Noah levantou com os olhos ainda meio colados de sono e encontrou um bilhete colado na própria testa, preso com fita adesiva.
"Bom dia, Dr. Dorminhoco.
O mundo já começou. Mas você ainda é meu melhor atraso."
Ele tirou o papel devagar, com um sorriso torto.
Seguiu o cheiro de café até a cozinha, onde Clara estava em pé sobre um banquinho, tentando alcançar um livro de arte escondido na prateleira mais alta.
- Você vai cair.
- Confiança é tudo, Noah. - Ela se equilibrou no banquinho e puxou o livro com uma mão só.
- E um banco mais baixo também ajudaria.
Ela desceu com um pulo e jogou o livro em cima da mesa, ainda com um lápis entre os cabelos.
- Hoje quero pintar com palavras.
- Isso é possível?
- Comigo, tudo é.
Enquanto ela se perdia no ateliê, Noah se aprontava para o hospital. Jaleco, crachá, relógio. Era como vestir uma armadura.
- Vou te buscar mais tarde? - perguntou.
- Só se vier com café. E um bilhete novo.
Ele saiu rindo.
Clara o observou da varanda. Havia algo nele que não combinava com o mundo. Ele era inteiro demais para caber nas urgências da vida. E ainda assim, era ali que ele brilhava.
No hospital, o dia começou como todos os outros: luzes fortes, passos apressados, páginas de exames, vozes urgentes. Mas, naquele dia, Noah sentia uma leveza difícil de explicar.
Até que encontrou Elias no refeitório, com a cara enterrada numa tigela de cereal.
- Você está sorrindo? - Elias perguntou, semicerrando os olhos. - Isso é suspeito.
- Tô só... bem.
- Bem ou apaixonado?
Noah não respondeu. Mas o silêncio foi mais revelador que qualquer palavra.
Elias balançou a cabeça e pegou o celular.
- Cuidado. A vida não tem botão de pausa. Quando você vê, já tropeçou em algo que não queria perder.
Noah ficou pensando naquilo.
Na Clara dormindo com o pincel na mão.
Na Clara lendo poesia em voz alta enquanto pintava.
Na Clara com café e bilhete.
Na Clara.
À tarde, Clara recebeu Leo no apartamento. Ele entrou derrubando tudo como sempre, e trazendo uma nova ideia maluca: um projeto de arte urbana com bilhetes anônimos colados por Nova York.
- Adivinha de quem foi a inspiração?
- Espero que não seja o gato do vizinho.
- Você e seu romance poético com o doutor moreno. Sério, Clara. As pessoas precisam ver isso.
- São bilhetes íntimos, Leo.
- E se forem bilhetes para o mundo? E se o mundo for você?
Clara pensou. Sorriu. E disse:
- Me dá três dias. Eu te mostro o que tenho.
Quando Noah voltou, já era noite. O apartamento estava cheio de folhas no chão, pincéis mergulhados em potes improvisados e Clara deitada no sofá com tinta na bochecha e uma mecha de cabelo azul-claro.
- Meu Deus. Você explodiu?
- Explodi em mim mesma. O dia foi fértil.
Ele se sentou ao lado dela, devagar.
- Sabe o que Elias me disse hoje?
- Algo sarcástico e cheio de verdades?
- Que a vida não tem pausa. Que quando você vê, tropeça em algo que não queria perder.
- E você tropeçou em mim?
- Com força.
Clara apoiou a cabeça no peito dele. O coração batia forte, como se dançasse por dentro.
- Sabe, eu tinha tanto medo de amar alguém que pudesse um dia ir embora.
- E agora?
- Agora eu só tenho medo de esquecer como é amar você.
Noah ficou em silêncio.
Não por falta do que dizer.
Mas por saber que algumas frases não merecem resposta.
Só presença.
Naquela noite, enquanto Clara dormia, ele levantou devagar, foi até a escrivaninha e deixou um novo bilhete dentro do caderno de rascunhos dela:
"Se um dia a memória me trair,
que meu corpo ainda saiba o caminho de volta pra você."
Dobrou o papel com delicadeza e o escondeu na última página, atrás de um esboço inacabado.
O fim de semana chegou com chuva e vinho. Eles ficaram em casa, viram filmes antigos, discutiram sobre as cores de Van Gogh e sobre como o silêncio de um hospital nunca é igual ao silêncio de casa.
- Eu gosto do som do seu silêncio - disse Clara, encostada na porta do banheiro, enquanto ele escovava os dentes.
- O meu silêncio tem som?
- Tem. E cheiro. E textura. É meio... veludo em noite fria.
Ele gargalhou com a escova na boca.
- Você é doida.
- E você é meu.
Na segunda, Sol ligou. Queria que Clara passasse um fim de semana com ela e o marido, em Beacon.
- Você e o doutor-coração-devastado podem vir. A casa tem lareira.
Clara sorriu. Noah estava ao lado, lendo um artigo médico com os pés no colo dela.
- Ele topa. Só se tiver café e um travesseiro bom.
Sol bufou.
- Ele já é da família, é?
- Quase.
- Cuidado com os "quases", Clarita. Eles são ótimos em parecer eternos.
Clara desligou e olhou para Noah.
- Você se vê morando aqui?
Ele levantou os olhos do artigo. Piscou devagar.
- Às vezes sinto que já moro.
Ela esticou a mão e tocou a bochecha dele.
- Então fica.
Ele ficou.