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O tempo com Clara passava devagar de um jeito bom. Não era lento por tédio, era lento como os domingos da infância, quando tudo parecia durar mais.
Noah começou a perceber isso numa terça-feira qualquer. Acordou no ateliê com o rosto amassado no travesseiro dela e a luz da manhã entrando suave pela janela. Clara já estava acordada, de joelhos no chão, desenhando com carvão numa folha maior do que ela.
- Você nunca dorme? - ele murmurou, com a voz ainda cheia de sono.
- Só o suficiente pra sonhar e voltar.
Ela não o olhou ao responder. E mesmo assim, ele sorriu.
Levantou-se, foi até a bancada e encontrou mais um bilhete colado no vidro da garrafa térmica:
"Te observo enquanto o mundo ainda está desligado.
E juro que poderia amar só isso."
Ele tomou um gole do café e guardou o bilhete na carteira. Já estava ficando cheio - e ainda assim, não pensava em parar.
Naquela tarde, Clara o levou para um piquenique improvisado no Bryant Park. Era inverno, estava frio, mas ela insistia que a luz daquele dia merecia ser sentida ao ar livre.
- Vai pegar uma gripe - ele disse, enrolado num cachecol, já arrependido.
- Melhor uma gripe com você do que saúde sem graça - retrucou, abrindo um cobertor no chão.
Eles comeram frutas cortadas, pão fresco e queijo meia cura. Ela levou vinho em garrafinhas térmicas e um livro de poesia do Rilke com anotações dela nas margens.
Ele levou só a presença - e isso bastava.
Enquanto observavam as folhas secas sendo levadas pelo vento, Clara virou o rosto pra ele.
- Sabe o que eu mais gosto em você?
- Que sou pontual? - brincou.
- Que você me escuta até quando não entende.
Alguns dias depois, conheceram Leo, amigo de Clara desde a época da faculdade. Artista performático, alma barulhenta, sorriso largo e roupas cheias de cor.
Ele apareceu no ateliê num sábado, sem avisar, como sempre fazia.
- Então você é o médico - disse, olhando Noah de cima a baixo, como quem avalia uma escultura.
- Sou - respondeu Noah, firme, mas curioso.
- Parece mais economista. Mas tudo bem, confio no gosto da Clara. Ela só escolhe gente com rachadura invisível.
Clara riu alto.
- Leo é uma das pessoas que me fazem continuar.
- E você - disse Leo, olhando pra Noah -, tá fazendo ela ficar.
Foi a primeira vez que Noah ouviu aquilo. E não soube responder. Mas ficou com a frase na cabeça por dias.
No domingo seguinte, foi a vez de Noah apresentar alguém a Clara: Elias, seu colega de residência e, na prática, seu melhor amigo. Elias era engraçado, direto, com aquele humor típico de quem passa tempo demais nos corredores de hospitais tentando não desmoronar.
Encontraram-se num café discreto perto do hospital, e Noah estava visivelmente nervoso.
- Então, você é a famosa Clara? - perguntou Elias, sorrindo. - Ele fala de você como quem fala de um quadro que não entende, mas não consegue parar de olhar.
Clara achou graça. Noah ficou vermelho.
- E você é o Elias que vive dizendo que o Noah precisa urgentemente de um hobby?
- Esse mesmo. E parece que ele achou um - respondeu, olhando para o casal com um meio sorriso.
Noah revirou os olhos, mas estava feliz. Pela primeira vez, a vida dele parecia algo mais do que escalas, prontuários e plantões noturnos.
Na semana seguinte, uma nova personagem apareceu - quase sem querer.
Olivia, ou Liv, a ex-namorada de Noah, surgiu no hospital para visitar um familiar. Tinha os olhos cansados, mas a mesma postura impecável de sempre.
Encontraram-se no corredor da ala neurológica. Noah não esperava. Ficou estático por um segundo.
- Você está bem? - ela perguntou, depois de um silêncio.
- Estou, sim. Você?
- Também. Quer dizer... mais ou menos. Vi seu nome na ficha do meu tio. Ainda está por aqui.
- Sim. Muita coisa mudou. Mas ainda estou.
Ela hesitou, olhou nos olhos dele.
- Você tá com alguém?
A resposta veio rápida, quase automática.
- Tô. Com alguém... que me faz lembrar do que é leveza.
Olivia apenas assentiu. Sorriu de leve.
- Espero que dure.
E foi embora.
Noah passou o resto do dia com aquela frase ecoando na cabeça. "Espero que dure."
Não por Liv - aquilo estava enterrado. Mas pela incerteza. Pelo medo sutil que aparecia de vez em quando no fundo dos olhos de Clara, quando ela falava do tempo.
Naquela noite, ao chegar no ateliê, encontrou um novo bilhete colado no espelho:
"Você é meu tempo desacelerado.
Meu café quente no caos.
Meu ponto de descanso no meio da pressa."
Ele não disse nada. Só a abraçou por trás, em silêncio.
E ali, de olhos fechados, desejou que aquilo realmente durasse.
Mesmo sem prometer.