Quando acordei, a primeira coisa que senti foi o cheiro de desinfetante, seguido pela dor latejante no meu pulso direito.
O quarto do hospital estava silencioso, exceto pelo som suave dos aparelhos médicos.
Olhei para a minha mão, agora envolta em ligaduras grossas.
A imagem do acidente de carro voltou à minha mente, nítida e brutal, o som de metal a torcer-se e o meu próprio grito.
Peguei no meu telemóvel com a mão esquerda, os meus dedos a tremer.
O ecrã mostrava dezenas de chamadas não atendidas do meu marido, Miguel, e da minha sogra.
Ignorei-as todas e abri a galeria de fotos.
A última fotografia que tirei foi do meu desenho finalizado, uma ilustração de um livro infantil que tinha sonhado publicar.
Agora, o meu pulso estava partido. O médico disse que a recuperação seria longa e talvez nunca recuperasse a destreza total.
Respirei fundo, tentando conter a onda de desespero.
Foi nesse momento que a porta se abriu.
Era o Miguel. Ele não parecia preocupado ou aliviado por me ver acordada.
A sua cara estava tensa de raiva.
"Finalmente acordaste, Sofia? Sabes o problema que causaste?"
A sua voz era fria, sem um pingo de calor.
"Onde está a Clara? Ela estava comigo no carro. Ela está bem?"
Clara era a sua prima. Eu tinha-lhe dado boleia a casa como um favor para o Miguel.
Ele bufou, um som de puro desdém.
"A Clara está ótima, só alguns arranhões. A sorte dela foi ter saído do carro segundos antes de seres atingida. Mas por tua causa, ela perdeu uma entrevista de emprego muito importante!"
"Ela saiu do carro?" perguntei, confusa. "Não, ela estava ao meu lado quando o outro carro nos atingiu."
"A Clara disse que saiu. Estás a chamá-la de mentirosa?"
A sua acusação pairou no ar, pesada e feia.
"Miguel," eu disse, a minha voz a tremer ligeiramente, "Eu preciso de te dizer uma coisa importante. O meu pulso..."
Ele interrompeu-me, acenando com a mão de forma desdenhosa.
"Eu sei do teu pulso. O médico já me disse. Honestamente, Sofia, és sempre tão dramática. É só um osso partido. Pessoas partem ossos a toda a hora e continuam com as suas vidas."
As suas palavras atingiram-me com a força de um golpe físico.
"Miguel, eu sou ilustradora. A minha mão é a minha carreira. É a minha vida."
"Não sejas ridícula," ele respondeu. "Podes sempre encontrar outro hobby. Além disso, eu ganho dinheiro suficiente para nós os dois. Devias era estar a pensar em como te vais desculpar à Clara e à minha mãe."
O choque deixou-me sem palavras.
"Desculpar-me?"
"Sim. A minha mãe está furiosa. Ela passou o dia inteiro a consolar a Clara. A pobre rapariga está traumatizada por tua causa."
Uma risada amarga escapou-me dos lábios.
"Traumatizada? Eu é que quase morri!"
"Não exageres," ele disse, o seu tom a ficar ainda mais duro. "Agora ouve, a minha mãe e a Clara estão a vir para cá. Quero que peças desculpa assim que elas chegarem. Entendido?"
Olhei para ele, para o homem com quem me casei, e vi um estranho.
"Não," disse eu, a minha voz subitamente firme. "Não vou pedir desculpa por algo que não foi culpa minha."
A sua cara ficou vermelha de fúria.
"Sofia, não me desafies nisto. Depois de tudo o que fiz por ti..."
"O que fizeste por mim, Miguel?" interrompi. "Ignoraste as minhas chamadas? Culpaste-me por um acidente? Minimizaste a lesão que pode acabar com a minha carreira?"
Ele deu um passo em frente, a sua presença a encher o pequeno quarto.
"Estás a ser ingrata. A família é a coisa mais importante. E a Clara é família."
"E eu?" perguntei, a minha voz a quebrar-se. "Eu não sou tua família?"
Ele hesitou, apenas por um segundo, mas foi o suficiente.
Nesse segundo, eu soube. Eu soube que, no seu mundo, eu seria sempre uma estranha.
"Miguel," disse eu, a minha decisão a solidificar-se a cada palavra. "Eu quero o divórcio."