Recebi alta do hospital dois dias depois. A Clara veio buscar-me. Como o meu apartamento estava inabitável, ela levou-me para a casa dela, um pequeno estúdio acolhedor perto do rio.
"Fica o tempo que precisares," disse ela, enquanto me preparava uma chávena de chá.
O meu corpo ainda doía, mas a minha mente estava clara. O primeiro passo era encontrar um advogado. A Clara recomendou-me uma mulher chamada Inês, conhecida por ser implacável e especializada em divórcios complicados.
Marquei uma consulta para a manhã seguinte.
Passei a noite a ler o resto do diário da minha mãe. As últimas entradas eram difíceis de ler. A sua escrita tornou-se instável, as frases mais curtas.
"Ele não me vê. Eu sou invisível nesta casa. Sou apenas uma função. A esposa. A futura mãe. Não sou eu."
"Hoje, ela criticou o meu vestido. Disse que não era apropriado para a mulher de um homem como o João. Ele ficou calado. O seu silêncio é a pior traição."
"Às vezes, sonho em fugir. Ir para um lugar onde ninguém me conhece. Onde eu possa ser apenas eu. Mas depois olho para a minha barriga e sei que não posso. Tenho de ficar. Por ti, minha filha."
A última entrada era de uma semana antes de ela morrer num acidente de carro.
"Eu não aguento mais. A escuridão está a consumir-me. Perdoem-me."
As lágrimas que eu tinha segurado no hospital finalmente caíram. Chorei pela minha mãe, pela vida que ela nunca teve. Chorei pela solidão dela. E chorei porque quase segui o mesmo caminho.
Na manhã seguinte, encontrei-me com a Inês. Ela era uma mulher de cinquenta e poucos anos, com um olhar penetrante e um aperto de mão firme.
Eu contei-lhe tudo. O incêndio, as chamadas ignoradas, a Sofia, a perda do meu bebé, a visita da Helena ao hospital.
Ela ouviu-me sem interrupção, apenas a tomar notas num bloco de papel.
Quando terminei, ela olhou para mim por cima dos óculos. "O seu marido foi negligente. A negligência dele causou-lhe danos físicos e emocionais extremos, resultando na perda da sua gravidez. Isto não é um divórcio simples, Sra. Costa. Isto é um caso."
"Um caso?"
"Podemos processá-lo por danos. A recusa dele em conceder o divórcio e as ameaças da mãe dele só fortalecem a nossa posição. Eles estão a tentar intimidá-la."
Senti um vislumbre de esperança. "O que preciso de fazer?"
"Primeiro, precisamos de provas. Registos telefónicos das suas dezassete chamadas. O relatório dos bombeiros que a resgataram. O seu relatório médico do hospital. E o relatório do incêndio de Sintra, para provar que ele estava lá com a Sra. Sofia."
"Eu consigo tudo isso," disse eu.
"Ótimo. E sobre o apartamento? Estava em seu nome?"
"Estava em nome de ambos. Comprámo-lo com um empréstimo."
"E a clínica veterinária do seu sogro?"
"É da família dele. O Miguel não tem parte nisso, que eu saiba."
"Vamos descobrir," disse a Inês com um sorriso fino. "Famílias como esta... elas tendem a misturar os bens para evitar impostos e proteger os seus 'meninos de ouro'. Deixe-me investigar."
Saí do escritório da Inês a sentir-me mais forte do que em anos. Eu não estava mais a reagir. Estava a agir.
Passei o resto do dia a fazer chamadas. Obtive uma cópia do relatório médico. Pedi à minha operadora telefónica os registos das chamadas daquele dia. Contactei a esquadra de bombeiros que me resgatou.
À noite, recebi uma mensagem de um número desconhecido.
"Ana, sou eu, a Sofia. Podemos encontrar-nos? Por favor. É importante."