Naquela manhã, o juiz bateu o martelo.
Ele anunciou o fim do meu casamento de cinco anos com o Miguel.
Saí do tribunal, o sol do meio-dia queimava-me a pele, mas eu não sentia nada.
O Miguel correu atrás de mim.
"Catarina, tens mesmo de ser tão cruel?"
A sua voz estava cheia de raiva.
"A Ana só perdeu um rim, ela não morreu. Eu já te expliquei, foi um acidente."
Olhei para ele, para o homem com quem partilhei a cama durante cinco anos.
O seu rosto bonito estava agora distorcido pela impaciência.
"Um acidente?", perguntei calmamente.
"Empurraste-me escada abaixo para que eu perdesse o bebé e pudesses usar o meu rim para salvar a vida dela. Chamas a isso um acidente?"
"Eu não te empurrei!", ele gritou, a sua voz a atrair olhares de quem passava.
"Tu escorregaste! Eu tentei agarrar-te! A Ana é minha irmã, como podes pensar uma coisa dessas de mim?"
Irmã.
Ah, sim, a sua preciosa irmã sem qualquer laço de sangue, Ana.
A mulher que a minha sogra, a Lúcia, trouxe para casa há dez anos.
Eles disseram que ela era órfã, que os pais dela tinham morrido num acidente de carro para salvar o pai do Miguel.
Por isso, a família devia-lhe tudo.
Durante dez anos, a Ana viveu na casa deles, tratada melhor do que uma filha.
E eu, a verdadeira nora, era tratada como uma estranha.
Sorri, um sorriso vazio.
"Miguel, o nosso bebé morreu. O meu rim foi-se. O nosso casamento acabou. Não há mais nada a dizer."
Virei-me para ir embora.
Ele agarrou-me o braço com força.
"Catarina, não sejas ridícula. A Lúcia está a organizar um jantar em casa esta noite. Ela quer que voltes. Pára com este disparate do divórcio."
"Voltar?", ecoei, sentindo uma onda de náusea.
"Para continuar a ser a vossa fonte de sangue e o vosso banco de órgãos ambulante? Não, obrigada."
"Do que estás a falar?", a sua expressão tornou-se perigosa.
"A Ana precisava de um rim. Tu tinhas dois. O teu tipo de sangue é raro, exatamente como o dela. Foi o destino. Devias sentir-te honrada por salvar a vida dela."
A lógica dele era tão absurda que me deixou sem palavras.
Honrada.
Eu devia sentir-me honrada por ter sido drogada, por ter acordado numa cama de hospital com uma dor lancinante e um rim a menos.
"Ouve, o que está feito, está feito", disse ele, suavizando um pouco o tom.
"Eu sei que estás chateada por causa do bebé. Podemos ter outro. A Ana está a recuperar bem, em breve poderemos tentar de novo."
A frieza das suas palavras finalmente quebrou a minha compostura.
"Ter outro?", a minha voz tremeu.
"O meu filho morreu, Miguel. Ele tinha três meses. E tu dizes que podemos simplesmente 'ter outro'?"
"Foi um sacrifício necessário!", ele explodiu novamente.
"A vida da Ana estava em jogo! Um feto de três meses não se compara à vida de uma pessoa adulta!"
Olhei para ele, para o homem que uma vez jurei amar para sempre.
Naquele momento, eu não via nada além de um monstro.
Puxei o meu braço do seu aperto com toda a minha força.
"Fica longe de mim."
Virei-lhe as costas e afastei-me, sem olhar para trás.
O meu telemóvel tocou. Era um número desconhecido.
Atendi.
"Catarina? Sou eu, a Ana."
A voz dela era fraca e suave, como sempre. A voz de uma vítima.