Foi difícil sair de Gramado, buscar Brenda e Alan na escola, em Canela, deixar o garoto na casa de um amigo (dar mil recomendações de como se comportar na noite longe de casa, mesmo que estas não fossem, de fato, necessárias) e depois dirigir o utilitário até São Francisco de Paula, com Brenda.
Quando finalmente deixou a parte movimentada da cidade de Canela, Louise conseguiu relaxar e aproveitar a bela paisagem que o inverno oferecia no sul gaúcho pouco antes de escurecer. Na estrada curva que seguia viagem, a cor gradiente do céu misturava-se à fumaça das chaminés por praticamente todas as casas por onde passavam. O cuidado na estrada precisou ser redobrado, pois, apesar de não ser o primeiro dia de inverno, era o primeiro dia de neblina, que começava a tomar conta da paisagem cedo, naquele entardecer.
A companhia da filha fazia Louise nem perceber os 48 km até sua casa. Com apenas 5 anos, Brenda falava pelos cotovelos e contava ótimas histórias sobre a escola, as amigas e as brigas que tinha com elas, detalhando, assim, as manhãs que passava com a babá no apartamento em Gramado. Louise a amava. Quanto mais olhava a filha, mais a achava parecida consigo. Os olhos castanho-escuros e os cabelos lisos levemente alourados e cortados na altura dos ombros, ao estilo clássico de Victoria Beckham, mas pouco mais compridos que os seus, deixavam Brenda muito parecida com a mãe. Por mais que a menina insistisse em deixar os cabelos crescerem, Louise se recusava, achava que Brenda ficaria diferente demais de sua própria aparência e não gostava da ideia. As roupas tal mãe, tal filha eram as preferidas de Louise: tinha pelo menos cinco conjuntos iguais aos da menina. Ela adorava os momentos em que as duas vestiam-se iguais, o que levava a chamarem a atenção na rua e a ouvirem elogios das pessoas. Nunca havia perguntado a opinião de Brenda, afinal, ela era apenas uma criança.
Louise não perdia nenhuma oportunidade de passar o tempo e dar atenção à filha, mas, às vezes, não percebia que quase não tinha assunto com Alan, não dedicando a ele, nunca, o mesmo interesse que dispunha para Brenda. Para si mesma, justificava que o menino precisava de mais espaço e mais silêncio por ser reservado igual ao pai. Não raro, Alan dormia na casa de amigos, enquanto Louise recusava-se a passar uma noite longe de Brenda e não lhe permitia ir à casa das amigas para brincar, nem mesmo durante o dia, por mais que as mães insistissem.
Alan tinha o tipo físico do pai. Os cabelos escuros, o corpo alto e esguio, o sorriso de covinhas ressaltado por uma dentição perfeita. Era um menino lindo, mas nele havia algo que não se assemelhava nem a Louise, nem ao pai: os olhos não eram escuros e nem azuis, tampouco uma mistura dos dois. Os olhos de Alan eram de um tom verde-água iguais aos de sua tia Teodora, uma mulher que Louise mal podia suportar a factual existência.
A casa imponente revelava-se ao pé da Serra, entre as árvores da bela e requintada mata de araucárias que rodeava o Lago São Bernardo, região nobre de São Francisco de Paula, uma cidade pequena e pouco movimentada que rendia a Louise todo o descanso e o sossego que ela amava. Belas mansões destacavam-se ao redor do lago, criando um cenário pitoresco, e a casa de Louise não perdia em nada para nenhuma delas. Situava-se quase ao final do lago, no lado oposto do hotel, propiciando uma vista de tirar o fôlego, o que era também o cenário favorito da família para as suas fotos. Disposta em três pavimentos desconexos, da rua ninguém enxergava mais da casa do que o necessário. Podia-se ver a entrada da garagem em uma curva muito íngreme. As árvores escondiam algumas vidraças enormes entre tijolos à vista tingidos de verniz. O tom avermelhado era a cara do inverno. Em destaque, enxergava-se da rua uma escadaria sofisticada que atravessava dois pavimentos, assim como um belíssimo lustre em tons de verde que Louise importara da França. Quem estava ao redor do lago também só via o mínimo necessário para que a família se sentisse segura, o que despertava certa curiosidade sobre o conteúdo da mansão.
Quem entrava pela subida íngreme chegava até a entrada principal, que exibia uma imensa porta pivotante branca que dava diretamente nas salas de estar e jantar, que eram de tamanhos completamente exagerados para uma casa habitada, eventualmente, por quatro pessoas. Uma pequena escada propiciava uma descida até a cozinha, de conceito aberto, no melhor estilo americano, com diversos eletrodomésticos e uma ilha com banquetas, bem no centro. Da cozinha, havia acesso à piscina, pouco usada, a única parte plana do terreno, cujo aterramento custou muito mais do que o orçamento final de uma casa popular. Do outro lado da sala de estar, estava a escadaria, que era vista da rua e levava às cinco suítes do andar superior.
Era uma casa completamente luxuosa e maravilhosa. Cada suíte tinha sua peculiaridade. As das crianças eram muito confortáveis, cada uma decorada com o tema escolhido por eles. A suíte master do casal competia bem com um quarto de hotel cinco estrelas, talvez com uma suíte presidencial. Na entrada, havia um pequeno hall bem iluminado, contendo apenas uma folhagem decorativa. Virando à esquerda, um marco sem porta revelava uma bela cama king size, cujos lençóis combinavam com as cortinas e com o tapete. A cama localizava-se em um degrau acima do nível do quarto, ornamentado por uma luz neon clara que seguia por toda a sua extensão. A suíte ainda continha um closet duplo, muito espaçoso e iluminado, em que o casal ostentava roupas de alta costura muito bem organizadas, sendo boa parte adquirida no exterior. O banheiro da suíte era luxuoso e altamente limpo. Uma enorme banheira de hidromassagem acomodava perfeitamente duas pessoas e, ao teto, havia claraboias, das quais se podia se enxergar o céu durante o banho. A casa era o sonho de Louise.
Ao aproximar o utilitário, Louise viu fumaça na chaminé. Imaginou que Tomás havia acendido o fogo para lhe esperar. Pensou na casa quentinha, no cheiro bom da lenha de acácia, no tapete redondo da sala, no qual pretendia deitar-se e assistir a um bom romance na televisão, de canais por assinatura, ainda na noite que estava iniciando. Não precisaria ter pressa para dormir, pois o melhor de ser o próprio chefe era fazer o próprio horário. Pensou no banho quente, no chambre, no vinho. Lembrou-se de por que amava cada vez mais o inverno.
- Não sei por que não ficamos em Gramado hoje - exclamou Tomás ao beijar rapidamente a esposa e ajudar a descer a mochila de Brenda do utilitário, estacionado na garagem ao lado de seu Audi.
- Porque eu amo esta casa, aqui é o meu lar - respondeu Louise, aos sorrisos - Brenda, coloca a banheira para encher para a mamãe, por favor?
- Posso entrar também?
- Claro, meu amor.
Atrás da filha, o casal entrou na mansão pela porta lateral. Ao ver a menina entrando pela sala e subindo a escadaria, Tomás demonstrou a Louise sua preocupação:
- Por que o Alan vai dormir fora hoje, de novo?
- Ele já tem 12 anos, está cheio de trabalhos da escola para terminar. Deixa ele lá.
- Não gosto, Louise. O que a mãe do Vitor vai pensar? Todo dia é isso. Esse menino tem que ficar mais tempo em casa, estamos perdendo tempo na educação dele. Não quero educar um filho à distância e também sinto a falta dele nessas noites em que podemos ficar todos juntos.
- Tomás, agora não.
Era isso o que Louise dizia, sempre e imediatamente, quando queria sair de uma discussão, fazendo Tomás parar de falar. Ela sabia que, desta vez, ele estava certo. Queria que o marido fosse mais persistente e mais enérgico nas discussões. Começara a pensar qual foi a última vez em que eles realmente discutiram. Lembrava-se de várias vezes em que ela perdeu as estribeiras, mas nunca se lembrava do marido descontrolado. Ah, sim, houve uma vez em que ele gritou com ela e ainda hoje ela via que o motivo da mágoa do marido espelhava-lhe o fundo dos olhos. Mas ela não faria nada para mudar. Até poderia, mas achava que a mágoa seria eternamente sua. Tomás teria que domar os seus monstros assim como Louise tentava domar os seus próprios, todos os dias.
Após conferir que a filha pegara os brinquedos para a banheira, Louise separou uma roupa para depois do banho da menina, sentou-se à frente da vidraça da sala ao lado do marido e ficou admirando a linda visão do Lago São Bernardo, ao longe.
- Tomás, tudo o que eu não quero em minha vida, hoje, é discutir contigo. Tive um dia maravilhoso, muito produtivo, tanto que estou cansada e quero uma noite ótima em família.
- Novos contratos?
- Muitos, ideias não param de chegar. A agência está a mil, estamos diversificando o turismo local com opções exclusivas e, claro, ganhando muito destaque na Serra. E, hoje, pensei em ficar casa, com um bom jantar e, mais tarde, depois que a Brenda dormir, um bom vinho e apenas o brilho dos teus olhos azuis - Louise beijou o marido apaixonadamente.
- Ok, vai para a banheira. Vou pedir comida italiana e preparar aquela vitamina que a Brenda adora - Tomás afastou-se para a cozinha.
Ao ir para o banheiro, Louise sentiu-se um pouco decepcionada. Quase nunca arrancava sorrisos do marido e, quando surgiam essas raras declarações de amor, ele sempre dava um jeito de sair fora. Achava que Tomás nunca fora lá muito apaixonado por ela. Resolveu não ir além nesses pensamentos, pois houve uma época em que a paranoia de uma possível traição tomou conta de si, o que a fez colocar pessoas para seguirem o marido. Nunca descobriu nada e desistiu de procurar. Lembrava-se de como ele fez questão de trazê-la para a sua vida logo que a conheceu, sabendo que havia vivido com ele um amor de cinema, um conto de fadas. Por vezes, sentia-se confusa por ele estar mais distante ultimamente, pois mesmo depois de tantos anos desejava muito o amor incondicional e ilimitado de Tomás.
No banheiro, o calor que emanava da banheira enchia o ar de vapor quente. Brenda já se despia e Louise fez o mesmo. Longe, lá embaixo, na cozinha, ouvia-se o barulho fraco do liquidificador. Louise adicionou os sais de banho e acionou a hidromassagem. Mãe e filha fizeram questão de esquecer que a vida existia lá fora. A mulher relaxando, a menina brincando com bonecos e patinhos. Louise perdeu a noção de quanto tempo ficou ali. Admirou o céu estrelado acima de sua cabeça, fechou os olhos e afundou até o queixo, na espuma cheirosa. Cochilou e despertou assustada. Observou os dedinhos de Brenda enrugados e achou que era a hora de sair. Ao desligar a hidromassagem, quando o silêncio imperou no banheiro, Louise continuou a escutar, ao longe, o liquidificador. Gritou o nome do marido, sem sucesso. Tomás nunca a ouvia do banheiro, muitas paredes os separavam, o que fazia o som do liquidificador ficar bem baixo. Louise achou que o marido havia feito a vitamina e, como as duas demoraram demais no banho, ele batia o líquido novamente ao perceber que a hidromassagem fora desligada, pois as luzes da casa sempre davam sinal. Pediu à Brenda que se vestisse e que fosse para o quarto brincar, indo ela mesma de robe até a cozinha.
Ao se aproximar, Louise sentiu um cheiro forte de fio queimado. Preocupou-se.
- Tomás?
Não obteve resposta.
Quando chegou à cozinha, viu o marido caído, de bruços, no chão. O liquidificador dava sinais de que estava funcionando há tempo demais.
- Tomás!
Por um instante, não sabia se tocava no marido ou desligava o liquidificador. Fez os dois ao mesmo tempo. Puxou com uma mão o fio da tomada, cessando o barulho na cozinha, e, com a outra, sacudia o marido. Por uma fração de segundo, teve medo de levar um choque, pois já ouvira histórias semelhantes. Ao tentar virá-lo, Louise percebeu sangue embaixo do balcão, por baixo de Tomás. Muito sangue. Sua camisa branca estava imersa, pintada de vermelho escuro. O cheiro do sangue quente do marido revoltou-lhe o estômago. Sentiu vontade de chorar, de vomitar. Ficou sem ação. Esqueceu da filha que estava em casa. Sabia que o marido havia morrido, mas nutria a esperança de que ele pudesse sobreviver. De imediato, discou 190 do telefone sem fio da cozinha.
- Emergência.
- Meu marido está caído no chão da cozinha... Ele está sangrando muito... Eu... Eu não acho pulsação... Preciso de ajuda agora!
- Acalme-se, senhora. - A voz feminina ao outro lado da linha era calma demais para uma atendente de polícia - Acha que ele desmaiou? Caiu?
- Não sei, não estava aqui, cheguei agora e ele está perdendo muito sangue...
- Senhora... Há sinais de arrombamento na casa?
Louise não havia pensado nisso. Achou que o marido havia levado um choque até ver o sangue. Será que alguém havia invadido a casa? Alguém poderia ainda estar na espreita... Ou dentro da casa. Ao dar alguns passos silenciosos para longe do marido, avistou a bela porta francesa, que dava acesso à piscina, entreaberta, sem sinais de arrombamento. Não havia, no entanto, razão para Tomás abrir aquela porta à noite, não naquele frio.
- Acho que alguém esteve aqui.
- Alô? Senhora? A senhora está sozinha em casa?
- Ai, meu Deus! - Louise sentiu um calafrio - Minha filha de 5 anos está no quarto.
- Corra para lá! Tranque a porta e fique com ela! Não desligue, passe-me o seu endereço.
Enquanto corria a passos largos para o quarto, Louise passou o endereço à policial, e não sabia se a polícia brasileira tinha recursos para rastrear chamadas, assim como via nos filmes. Quando chegou ao quarto da filha, a sensação foi de alívio. Brenda brincava com blocos, sentada em um tapete. Louise entrou e trancou a porta. Falando ao telefone, prestava atenção ao banheiro e ao closet da filha.
- Sim, estou segura - por fim respondeu - E meu marido? Por favor, não demorem!
Nesta hora, Brenda havia notado a inquietação da mãe. Ao olhar para a filha, Louise não conseguiu impedir as lágrimas de desespero.
- Mamãe... O que aconteceu? Onde está o papai? Eu estou com medo, mamãe.
- Vai ficar tudo bem, Brenda...
Mas não ia. Louise sabia que não ia ficar nada bem. Precisava pensar, tinha que tirar Brenda de casa, ela não podia ver o pai daquele jeito, causaria traumas que talvez nunca mais fossem solucionados. A casa em pavimentos desconexos acompanhava a subida do morro e não permitia nenhuma saída pela parte de cima. Alguém poderia estar à espreita, na mata. Louise achava improvável, pensou que se alguém a quisesse morta já o teria feito. A solução era descer com Brenda as escadas e sair pela porta da sala. Rezou para seu chaveiro estar no aparador próximo à porta, já que não poderia procurar as chaves de Tomás na cozinha. Resolveu seguir a orientação da policial e só sair do quarto quando visse a polícia. Suas lágrimas e o pranto da filha atrapalhavam seu pensamento, mas ela tinha que resolver. Brenda não poderia ver o pai. Demorou para achar o número da vizinha no histórico do telefone sem fio. Estava tremendo quando conseguiu completar a ligação.
- Nora... Estou com um problema muito grande. Eu não sei o que fazer. Por favor, me ajuda! A polícia vai chegar aqui em casa e eu preciso tirar Brenda pela porta da frente. Por favor, assim que a polícia chegar venha aqui para buscá-la...
- Eu não vou, mamãe - o pranto seguia no quarto cor-de-rosa.
- Nora, não venha antes da polícia chegar. Obrigada - Louise voltou o olhar para a filha - Brenda, confia na mamãe, eu preciso ajudar o papai, mas não posso fazer isto contigo aqui em casa. Vá lá para a casa da Nina, fica brincando com ela até a mamãe resolver as coisas.
- Cadê o papai?
- Brenda... Ele está passando mal. Ajude, filha. Vai lá para a Nina só um pouco.
- Está bem, mamãe.
São Francisco de Paula era uma cidade pequena, mas a polícia levou cerca de 25 minutos para aparecer. Por fim, Louise avistou o giroflash através da janela do closet da filha. Abriu a porta e pediu que Brenda seguisse as instruções. Desceu cuidadosamente e com muito medo, sem olhar para nada ao redor. Na sala, encontrou a chave no aparador e abriu a porta. Os policiais já estavam do outro lado.
- Tudo bem, senhora? Alguma de vocês está machucada?
- Meu marido.
- Vamos cuidar disso.
- Eu chamei uma vizinha para levar minha filha, ela deve estar lá na frente. Eu só vou entregar minha filha para ela.
O policial fez sinal afirmativo com a cabeça e adentrou a casa, deixando as marcas dos coturnos sujos no chão. Estava seguido de muitas pessoas, e Louise, em seu nervosismo, não conseguiu precisar o número exato. Ela carregava a filha nos braços. Saiu cuidadosamente pela porta da frente, tomando todo o cuidado para não deixar a cabeça de Brenda voltar-se para a cozinha. Achava que não daria para ver nada dali onde estavam, mas era um risco que não poderia correr. Louise viu que a polícia estava na cozinha. Na rua, encontrou o frio da noite de inverno que castigava a região, especialmente nos morros, e vestida apenas com um chambre de cetim, estremeceu. Teve que andar alguns passos na neblina antes de enxergar a vizinha Nora e o marido, aflitos, logo que iniciava a descida da rampa da garagem. Entregou Brenda, que nem pensou em reclamar:
- Por Cristo, Louise, o que aconteceu?
- Minha casa foi invadida. Tomás está com a polícia, eu vou entrar.
- Ele está bem? - Nora insistiu.
Louise fez sinal negativo com a cabeça. Nora imediatamente voltou-se para o marido e o convidou para irem para casa com Brenda.
- Se precisar, liga - falou Nora.
- Mamãe, me busca.
Assim, Louise deixou a filha ir com a vizinha. Nora e Louise não eram amigas, propriamente, mas encontravam-se à beira do lago nos fins de semana, tomavam chimarrão e deixavam as crianças brincarem no gramado. Conversavam sobre as viagens ao exterior e visitavam-se raramente. Louise confiava na vizinha, já que a família era de classe alta, assim como ela.
Alguns passos à frente e Louise já estava dentro de casa, algo que estava conscientemente tentando evitar. Avisou ao policial que precisava se vestir. Sem pensar, foi ao closet e colocou a primeira roupa quente que viu pela frente. Desceu as escadas e chegou até a cozinha. Encontrou quatro policiais parados ao redor do corpo do marido e dois socorristas inertes.
- Vocês nem tentaram ajudar? - Louise perguntou aos enfermeiros.
- Senhora, o seu marido já estava morto quando chegamos. Agora, vamos aguardar a perícia e a polícia civil. É necessário averiguar a causa da morte, que não parece acidental.
Louise tremia, mas não era de frio. Uma dor forte instalou-se em seu estômago, como se tivesse levado um chute. Por um momento, ficou sem ação. Empalideceu e teve a sensação de que as pessoas estavam mais distantes. Todos os sons fizeram-se ausentes em sua mente. Olhou bem para o policial quando este pegou-lhe pelos dois ombros e perguntou se ela estava bem.
- O senhor está me dizendo que meu marido morreu? Como posso estar bem? - não tinha certeza qual era a entonação da sua voz naquele momento.
- A senhora deveria chamar alguém. Tem algum parente próximo ou um amigo que possa vir aqui lhe fazer companhia?
Não tinha. Louise não tinha para quem ligar. Os pais estavam em Caçapava, a 370 km, e levariam cerca de cinco horas para chegar se saíssem imediatamente e no seu carro antigo. Teodora era uma pessoa fora de cogitação. Os amigos de confiança moravam na capital. Pensou, naquela hora, que sua vida era muito solitária. Decidiu ligar para Lauren, ela saberia o que fazer. Em duas horas, Lauren chegaria de Porto Alegre. Pensou bem nas palavras, o que dizer numa hora dessas, mas era certo que não poderia ficar sozinha. Achava que iria travar. Pegou o telefone e resolveu, por fim, pedir socorro.
- Alô, Lauren, sou eu. Lauren, me ajuda. Aconteceu uma tragédia aqui em casa, a polícia está aqui, eles dizem que Tomás está morto, alguém invadiu a casa, eu não sei o que fazer...
Louise olhou para o policial e informou que a amiga levaria duas horas para chegar.
- O que eu faço agora, moço?
- Vamos ter que esperar. A polícia civil vai colher o seu depoimento. Não acho que a senhora está em condições de contar duas vezes, por isso não vou lhe perguntar nada agora. Já vasculhamos a casa e a área externa, nas proximidades, e não encontramos ninguém.
Louise ficou sentada no chão, no canto da sala, chorando baixinho. Perdeu a noção do tempo, da temperatura e dos seus pensamentos, sendo que, eventualmente, ouvia seus pulmões puxando o ar com força, como se por algum período ela esquecesse de respirar.
Quando Lauren chegou, 1h40min depois, um policial foi avisando que a dona da casa não se encontrava bem. Lauren foi até Louise, que estava com os olhos vidrados.
- Louise. Olha, minha amiga. Acorda, eu estou aqui - não houve reação e Lauren dirigiu-se ao policial - Eu acho que ela está em choque. Não tem ninguém para atendê-la? Ninguém estava observando ela?
Ao ouvir o tom de voz grave de Lauren, um socorrista chegou até Louise. Lauren afastou-se para que ele pudesse deitar Louise de costas no chão. Ficou observando o socorrista levantar as pernas da amiga e averiguar suas pupilas com uma lanterna. Aproveitou o tempo, foi até a cozinha. Levou a mão à boca para repelir um grito de pânico que lhe viera à garganta quando enxergou Tomás deitado no chão, ensanguentado, sendo fotografado pela polícia em meio a plaquinhas amarelas numeradas. Tomás estava de barriga para cima. Lauren observou alguma perfuração no abdome do amigo, que parecia ser discreta, porém, era dali que o sangue se espalhava para o restante da camisa. Notou, pela conversa dos policiais, que o perito já terminara o trabalho. Precisou esquecer a dor que lhe envolvia ao pensar que muitas pessoas sofreriam bem mais do que ela. Ligou para Teodora, deixou-a em pânico. Ligou para os pais de Louise. Ligou para a secretária em Porto Alegre. O som do zíper do saco preto de vinil onde o corpo de Tomás foi colocado a assustou. Ouviu Louise lhe chamar, da sala.
- Louise, onde estão as crianças?
- Alan não estava em casa, está em um amigo. Brenda está com a vizinha. Lauren, diga que este pesadelo vai acabar. Não posso acreditar que Tomás está morto. Ele estava aqui, agora, estávamos conversando, comemorando. Ele ia pedir comida italiana. Como vou contar para os meus filhos que eles não têm mais pai?
Após pronunciar as palavras, sem pausa nem para respirar, sendo que Lauren teve de se esforçar para entender, Louise chorou descontroladamente. Lauren sabia que deveria consolar, mas não conseguia. Tomás foi a pessoa que lhe estendeu a mão quando ela mais precisou, era seu amigo de verdade, talvez o único. Devia tudo o que era, tudo o que tinha, para Tomás. Não conseguia conceber a partida repentina de um amigo tão querido. Estava com dificuldade de segurar Louise. Apesar de ser bem mais alta, a mulher parecia ter perdido a força nas pernas. Quando Lauren percebeu, ambas estavam mal acomodadas no chão.
- Escuta, Louise. Tu vais ter que ser forte, minha amiga. Vais ter que ir à polícia. Eu vou contigo. Temos muito a fazer, muito a pensar. Eles vão pegar o teu depoimento. Temos que pensar em um funeral.
- Lauren, não...
- Não tem jeito, minha amiga. Força, tu vais precisar. Eu vou ficar aqui contigo e te ajudar pelo tempo que for necessário. Vamos à polícia, temos que ir.
Lauren passou trabalho para levantar Louise do chão. Os músculos da amiga pareciam todos travados. Louise demorou muito para andar até o carro, o tempo inteiro aparentando estar fora de si.
Na delegacia, Louise contou pausadamente o que ocorrera horas atrás. Não sabia muito. Estava na banheira com a filha. Escutou o liquidificador. Desceu. Encontrou o marido no chão. O delegado iniciou um pequeno interrogatório:
- Seu marido tinha inimigos?
- Absolutamente não. Ele era boa pessoa. Ajudava muita gente - usar os verbos em relação a Tomás, no pretérito, soavam mal aos ouvidos de Louise.
- No trabalho, alguma desavença?
- Ele e eu éramos sócios em uma empresa de advocacia e em outros negócios. Dividíamos todos os casos. Não tinha desavença alguma - Lauren interrompeu.
- Na família?
- Não - Louise já estava chateada com as perguntas.
- E a relação dele com a senhora, como era?
- Maravilhosa. Nos conhecemos há 15 anos e estamos casados há 14. Temos dois filhos. Nunca tivemos problemas, pouco brigávamos.
- Casos extraconjugais de algum dos dois? Alguma briga que a senhora pode estar esquecendo?
- Pelo amor de Deus! - Louise perdera a paciência.
- Senhora, estou tentando investigar um assassinato!
- Do meu marido, senhor. Estamos falando do meu marido. O senhor está me tratando como suspeita?
- Não descarto nenhuma hipótese ainda.
- Eu não matei o meu marido, senhor delegado. Temos as câmeras de segurança na casa. O senhor pegue lá e olhe. Vão provar que não fui eu. Um cidadão trabalhador nem pode desfrutar de uma noite tranquila em casa. De vítima passa a ser suspeito. O senhor cuide o que vai me falar porque eu acabo com a sua carreira em dois toques, basta me sentir ofendida.
- Está certo. Vejo que a senhora está um pouco nervosa. Caso se lembre de mais detalhes me procure. Vamos solicitar essas câmeras e aguardar o resultado da autópsia.
- Em quanto tempo o senhor pensa que teremos o corpo para o funeral? - interveio Lauren.
- Deve demorar, não temos serviço de IML na cidade e vamos ter que chamar algum médico de sobreaviso. Dificilmente lidamos com assassinatos por aqui.
- Podemos agilizar. Vamos pagar uma autópsia particular. Consiga um contato, por favor.
- Isto vai custar bem caro.
- Não há problema - respondeu Lauren, com olhar de desdém, ao conduzir Louise para fora da delegacia.
A noite mais longa e triste da vida de Louise acabara de iniciar.
Passou a noite chorando com Lauren no apartamento de Gramado. Ouviu a amiga falar com Teodora ao telefone. Imaginou que a cunhada estaria na própria casa em Gramado. Recebeu os pais.
No amanhecer mais difícil de sua vida, encarou a tarefa de reunir os filhos e contar que o pai havia morrido. Preparar os dois para o primeiro funeral de suas vidas: o do próprio pai. Com as crianças na sala, os dois sabendo que algo errado havia acontecido, Louise não sabia por onde começar. Sua expressão denunciava. Teve dificuldade em se focar no que estava fazendo. Olhou para Lauren, olhou para os pais e começou o seu discurso mórbido e cruel.
- Crianças, uma coisa muito triste aconteceu esta noite na nossa casa. Seu pai... - engoliu em seco o choro iminente - seu pai está morto.
O que se seguiu foi desespero. Louise não conseguiu ficar na sala, estava com a mente confusa, não sabia se, de fato, estava ali, presente, naquele momento. Esperou, como nunca, que o sonho acabasse instantaneamente, mas isso não aconteceu. Ouviu a mãe e a amiga Lauren dizerem às crianças que o pai havia ido morar no céu, que estava num lugar melhor, que havia virado uma estrela, essas coisas que todas as pessoas dizem quando não têm nada melhor a dizer. Coisas mentirosas para quando a dor da perda é inevitável. Os filhos sofreriam demais. Não havia maneira de Louise amenizar a dor deles e nem a sua. Ouviu o choro alto e desesperado de Alan; ele era grande, entenderia muito. O desespero tomou conta de si. Deixou-se escorregar na parede e sentou-se no chão. Sentiu os braços do pai abraçá-la por trás.
- O que eu faço agora, pai?
- Não há o que fazer, minha querida. Tenha paciência, chore, permita a seus filhos chorarem e espere que o tempo cuide do resto.
- Eu não consigo sozinha, pai. Eu não sei viver sem o Tomás. O que vai ser dos meus filhos?
- Tu não estás sozinha, filha. Vamos ficar aqui, até para sempre, se tu precisares.
O discurso do pai era bom e ruim. Era bom saber que ela teria apoio. Era péssimo saber que Tomás tinha mesmo morrido e que sua vida nunca mais seria a mesma. Por volta das 8 horas da manhã, Lauren obrigou Louise a tomar um calmante, ainda que ela se recusasse muito. Lauren anunciou que o funeral ocorreria em Gramado e começaria em 30 minutos.
- A polícia já...
- Louise, escuta. Este momento é doloroso para todos nós. Não vamos pensar na polícia agora, vamos nos dar o direito de nos despedirmos de Tomás. Cuide das crianças. Eu vou cuidar da polícia depois.
Lauren havia cuidado de todo o funeral. O local escolhido era requintado, como Tomás. Louise sentou-se em um banco reservado aos familiares, bem próximo ao caixão do marido. Estava desolada. Não sabia com que roupa estava, com que cara estava. Foi a primeira a entrar na capela, seguida dos filhos, que estavam amparados pelos avós. Tomás já repousava no caixão, mas Louise não teve coragem nem de chegar perto. Sentou-se e ficou como uma estátua. Tremia. Quando pensava em Tomás, lembrava-se de um cara lindo e ativo, não aceitava que ele estivesse ali deitado e imóvel, para sempre. O que havia perdido naquela noite era uma parte de si, da sua vida.
Viu Teodora e Thiago chegarem próximos ao caixão, desesperados. Viu o sogro, que se sentou nas cadeiras opostas a ela, como ela, inerte. Em seguida, muitas pessoas a procuraram para lhe cumprimentar. Ficou quieta como uma múmia. Brevemente via olhares sobre si e alguns cochichos, mas ninguém mais a procurava, já que ela não respondia e nem olhava para ninguém. Viu Lauren incomodar-se com a imprensa. Tudo o que via parecia tão distante dela, como se estivesse observando aquilo de algum lugar ao longe, não estando presente ali. Não queria tomar medicação, sabia que lhe deixaria zonza e parada. Lembrava-se que o pai lhe ofereceu água e café algumas vezes. Recusou tudo. Perdeu a noção do tempo mais uma vez.
O sol já sumia quando Louise deu-se conta de que estava no cemitério, em um lindo gramado verde. Não se lembrava como havia chegado ali. Uma pessoa, que representava alguma igreja, convidava-a para dizer algumas palavras ao marido. Permaneceu imóvel. O que aquela pessoa poderia saber sobre Tomás? Os dois não frequentavam igrejas e tampouco lhe diriam alguma coisa naquele momento, algo que lhe fizesse sentir um pouco menos triste. Quando ele começou o seu discurso, ouviu, com clareza, a voz de Teodora cochichando ao seu ouvido:
- Está satisfeita agora, vadia? Conseguiu acabar de vez com a vida do meu irmão. Espero que tenhas olhado bem nos olhos do Thiago, acabaste com a vida dele há muito tempo. Espero que tenhas olhado bem nos olhos do meu pai. Minha mãe morreu por tua causa. Meu pai nunca mais falou com ninguém. Tu desgraçaste a minha família toda. Só que eu não vou morrer, eu não saio desta vida sem te ver sofrer muito. Tu podes ter enganado esta gente toda, pousando de granfina e boa esposa, mas eu sei que tu não prestas, sei que tu não vales nada e tu sabes muito bem das coisas erradas que tu fizeste. Meu irmão já não estava feliz há tempos. Não acredito que tenhas matado ele, mas acho que mandou matar. Vais receber uma pequena fortuna de seguro de vida agora, não é, vaca? Fora toda a fortuna que vais herdar. És milionária agora, parabéns. Fique sabendo, eu não sossego sem te ver atrás das grades.
Louise queria responder ao discurso cheio de ameaças de Teodora, mas seus pensamentos não estavam no lugar. Estava cada vez mais zonza e muito cansada. Imersa em uma tristeza sem fim, Louise só chorou baixinho a cada palavra que Teodora pronunciava. Esperou que só ela tivesse escutado, mas não tinha certeza. Lauren conduziu a família de volta ao apartamento em Gramado. No caminho, falava ao telefone com alguém que Louise não conhecia.
- Sim, ele esteve aqui... É muita desgraça para um dia só... Não sei quando volto... Cuida de tudo por aí. Tchau...
Já em Gramado, no apartamento que Tomás amava, a tristeza atingiu a todos de uma vez só.
Lauren acomodou a família, colocou Louise para dormir e ajudou os avós com as crianças. Esqueceu do próprio sentimento em prol de uma família destroçada.
No silêncio do quarto, Louise estava com o raciocínio lento. Não podia acreditar que não tinha mais Tomás. Achava que a realidade estava tão distante de si. Tentou organizar as ideias, sem sucesso. No meio da amargura e da tristeza, deitou-se no travesseiro de Tomás e respirou fundo o cheiro bom do marido, que estava muito presente ali. Tinha que lembrar-se de não deixar que as empregadas lavassem aquela roupa de cama. Em meio aos prantos, sozinha no escuro, tentou dormir.