Tomás era um exemplo de pai. Louise lembrava-se dos olhos azuis, do corpo esguio, malhado, com músculos levemente destacados, do cheiro bom misturado a fragrâncias importadas. Amava Tomás. Pensara que a sensação de tristeza nunca mais a deixaria. Chorou e deixou o desespero tomar conta, lembrando-se que nunca mais veria o marido, que não fariam mais nada juntos, que Tomás jamais voltaria para casa. Jamais ligaria novamente. Que não teria mais o companheiro para ajudar nos cuidados com os filhos. As noites de festas, as noites de amor. As infinitas fugidas do trabalho no meio da tarde só para um café; ele sempre ligava, ela nunca recusou. Os jantares a dois. As viagens longas e duradouras pelo Brasil e pelo mundo, em família, ou o simples chimarrão na sacada do apartamento quando havia tempo. Tudo era parte do passado a partir de agora. Era difícil entender que todos os bons momentos que compartilharam por 15 anos tinham acabado para sempre.
Não olhou o rosto do marido durante todo o funeral. Queria lembrar-se dele sempre lindo e cheio de vida, não como um cadáver pálido e gelado. Expectativas para o futuro já não havia mais, no momento. Sempre pensou que envelheceria com Tomás e que, por fim, alguma doença os levaria desta vida confortavelmente, mas nunca pensou em perdê-lo de forma abrupta. Não sabia como lidar com tamanha surpresa. Era estranho. Há três dias, ele estava ali, agora não o veria nunca mais.
Quando pensava nas coisas práticas, chorava ainda mais. Lembrou-se que teria de dar um fim aos pertences do marido, ao carro, às roupas. Batia o desespero e uma angústia acompanhada de uma dor forte no estômago. Pensava se conseguiria tocar a vida em Gramado e em São Francisco sozinha. Não fazia a menor ideia de como iria criar os filhos e suprir, para eles, a falta do pai, já que não conseguia suprir nem para si mesma. Quando pensava na casa do Lago São Bernardo, chorava. Era o lugar que ela considerava perfeito, seu santuário, porém achava que nunca mais conseguiria entrar lá. Lembrava-se do corpo do marido estendido no chão. O barulho do liquidificador não saía de sua cabeça e não queria nem imaginar novamente a sensação horrível que teve ao perceber que Brenda poderia estar em perigo. Ficar no apartamento em Gramado não era mais fácil do que lembrar da casa. Aquele era o lar de Tomás. Ele amava o apê do centro da bela cidade, local de badalação, em que se curtia o movimento pela sacada. Cada canto era decorado e planejado conforme as ideias de Tomás. Ficar ali era uma faca no coração de Louise, a cada passo.
E tinha a polícia. Sim, a forma como o policial questionou Louise acerca da morte do marido não lhe agradara em nada. Será que ela viria a parecer suspeita? Ligaria para Lauren assim que organizasse seus pensamentos. Não queria lidar com a polícia: depois de tudo o que estava passando, seria desaforo demais ainda parecer culpada. Havia alguma coisa durante o funeral que a deixou profundamente inquieta e ela não poderia deixar passar, mas como a tristeza tomou conta de si, e acompanhada de ansiolíticos, não se lembrava.
Depois de mais alguns minutos de choro descontrolado, Louise adentrou o banheiro da suíte. Não fora nada melhor encontrar os perfumes de Tomás, seu aparelho de barbear e seu roupão pendurado em frente à pia dupla. Olhou-se no espelho. A pele que ela exibia e que não fazia, nem de longe, parecer que tinha 35 anos, não era a mesma naquela manhã. Louise aproximou-se do espelho e examinou as olheiras roxas e profundas que ganhavam destaque com bolsas abaixo dos olhos, além de uma vermelhidão que os faziam parecer tochas acesas. Atrás de seu reflexo no espelho, percebeu que a mãe chegava de mansinho. Augusta tocou os ombros da filha e lhe ofereceu um chá.
- A senhora já está acordada?
- Eu não dormi. Como poderia?
- Como estão as crianças?
- Os dois estão dormindo. Estão muito tristes, minha filha. Você vai precisar de ajuda profissional para eles.
- Sim, acho que é só isso que eu posso fazer agora.
- Eu e seu pai lhe esperamos na cozinha.
De alguma maneira, bem lá no fundo de suas emoções, Louise sabia que seria muito bom ter a mãe por perto, pelo menos até as coisas irem para o lugar, mesmo sem saber que lugar seria esse.
A caminho da cozinha, pensou que estava entocada no apartamento há três dias. O apartamento na Borges de Medeiros pertencia a Tomás desde antes de namorarem. Teodora havia planejado o prédio todo, que não era assim tão grande. Tomás adquiriu o duplex com a cobertura e manteve o imóvel como o seu preferido. Não era exageradamente grande. Confortável e muito bem planejado, como todos os apartamentos que Louise conhecia em Gramado. Na cobertura, uma piscina pequena, cercada por áreas de ajardinamento, com um pergolado muito utilizado no verão. O andar inferior, que se localizava no terceiro andar do edifício, continha sala, cozinha e sala de estar conjugada. Todos os ambientes iluminados e bem decorados. A porta de entrada dava para a sala e logo ao lado encontrava-se um lavabo. Do lado oposto da sala, o corredor dava para três suítes. Tomás sempre brincou que, se tivessem mais filhos, não teriam onde acomodar. Da cozinha, havia uma porta para uma área de serviço, que não continha mais do que o necessário. Tomás estava longe de ser um acumulador.
A realidade batia à porta. Louise haveria de sair, alguma hora. Precisava se encontrar com o detetive Romero, contratado para solucionar a morte do marido. Precisava saber o resultado da autópsia e se a polícia tinha alguma novidade. Precisava ligar para a agência e ver se os funcionários estavam conseguindo tocar tudo sozinhos. Tinha de ir a Porto Alegre falar com Lauren, muitas pendências a resolver. Havia papelada, burocracia. O seguro de vida e a nova divisão da empresa, na qual Louise assumia como majoritária. Era assustador pensar em gerenciar sozinha, precisaria contar com Lauren.
Ao chegar na cozinha, uma proposta inesperada:
- Filha. Não seria bom se passasses um tempo conosco e as crianças em Caçapava?
- Mas, nem por um decreto. Era só o que me faltava.
- Você tem certeza de que está segura? Tem certeza de que seus filhos estão seguros?
- Mãe, eu definitivamente não sei. Para mim, estava sempre segura. Nós não tínhamos inimigos. Quem seria capaz de arrombar a minha casa e matar o meu marido? Por quê? Tomás era... - as lágrimas interrompem o raciocínio de Louise - ... Era uma boa pessoa, ajudava sempre muita gente. Eu não entendo. Não acho que a polícia resolverá coisa alguma, confio mais no meu detetive. Só acho que quem matou Tomás, se quisesse, poderia ter matado a mim e a Brenda também. Éramos alvos fáceis naquela noite. Acho que aquele destino era para Tomás e somente para ele. Não sei quem ou por que, mas eu juro por tudo o que eu amo que vou descobrir!
O pai observava a conversa escorado em uma bancada, com o semblante entristecido, rezando para que o diálogo entre mãe e filha não terminasse nas discussões cheias de mágoas como quase todas as conversas entre as duas nos últimos 17 anos.
- Eu e teu pai vamos ajudar no que for preciso.
- É bom. Brenda não vai conseguir lidar com isso de uma maneira muito fácil.
- Brenda? E quanto a Alan? Você acha que, para ele, vai ser menos difícil? Para mim, ele vai passar muito mais trabalho, era muito apegado ao pai e é pouquíssimo apegado a ti. Ele vai sofrer e vai precisar de muita ajuda. Ontem, ele me disse que nem pôde se despedir do pai, que não tinha certeza da última vez que disse que o amava.
- Claro, mãe. É que Brenda estava na casa aquela noite. Eu cuidei para que ela não visse nada, mas não posso encobrir a verdade do que aconteceu. E mais, Alan é mais velho, acabará entendendo.
- Você foi ótima em sair da casa, Louise. Fico feliz em ver que se preocupa tanto com a sua filha, todo o seu abalo revela o quanto você ama Tomás. Mas, me ouça, filha, preste mais atenção em Alan...
- O que diabos tu estás insinuando?
Havia chegado o momento que Paulo temia. Era a hora de ele intervir:
- Antes que vocês comecem, eu só quero alertar que duas crianças que acabaram de perder o pai e tiveram muita dificuldade para dormir estão tentando descansar, bem pertinho daqui. Então cuidem o que vão dizer...
- É sempre assim - Louise não deixou o pai terminar - Tu deverias ser a pessoa que mais me conhece no mundo, tu deverias me apoiar incondicionalmente. Olha bem... Do que estás me acusando agora? De eu não ser boa mãe? De eu não ser capaz de cuidar dos meus filhos? Achas que eu não amava Tomás, achas que andava atrás do dinheiro dele? Tu pensas como Teodora. Este tipo de mãe é o que eu tenho evitado me tornar.
- Louise - a mãe respondeu calmamente - melhor do que ninguém, tu sabes que não é por isso que Teodora tem restrições a ti.
- Restrições? Aquela bruxa não perde a chance de me prejudicar. Disse-me coisas horríveis no funeral, enquanto eu pensava no meu marido. Não me deu o direito de sofrer e isso ela não poderia ter tirado de mim. A senhora sempre vê o lado dela, mas nunca pensou que, para mim, também havia motivos...
- Mas tu nunca me contaste sobre estes motivos!
- E tu entenderias?
- Claro que não! Alguma vez, nestes anos todos, pensaste em Thiago?
- E por que eu deveria pensar?
- Chega! - Paulo intercedeu - Lembrem-se do rumo da conversa que vocês iniciaram! Enterrem de vez este maldito passado! Lembrem-se que agora estamos aqui, todos, querendo o melhor para duas crianças que acabaram de perder o pai.
- Pai, ela me amaldiçoou. Aquele dia, há 13 anos, quando me jogou na cara coisas horríveis, ela me amaldiçoou. É este, dona Augusta, o preço que a senhora me disse que eu iria pagar um dia?
- Talvez, Louise...
- Augusta, pelo amor de Deus! - Paulo já não sabia o que fazer.
- Eu jamais amaldiçoaria minha própria filha. Louise, eu estou aqui para te apoiar, mas sempre achei que tu tinhas questões psicológicas a tratar...
- Agora louca? De que mais serei acusada hoje?
- Filha. Eu nunca amaldiçoei ninguém. Há 13 anos tu me acusas. Mas eu te chamei a atenção para erros em sequência que tu vinhas cometendo a tua vida toda. Eu tenho muito orgulho da mulher que tu te tornaste hoje, mas eu tinha medo que tu apenas ficasses se aproveitando das pessoas...
- Não precisamos disso agora, Augusta. Nossa filha está de luto e passando por momentos difíceis - interveio Paulo.
- Precisamos, sim! - a resposta foi mútua na cozinha.
- Continua, mãe...
- Pois bem. Lembro-me bem de uma vez, Louise, quando tu tinhas apenas 16 anos e resolveste trocar de escola. Eu e teu pai te explicamos que a escola do teu interesse era do outro lado da cidade, que não poderíamos te carregar todos os dias. Eu sei bem o que tu querias na escola nova. Querias aparecer para aquelas meninas metidas a ricas que tu chamavas de amigas. E tu foste, Louise. Lembro-me bem. Começaste a namorar o açougueiro. Pobre Éder, era nosso vizinho, dirigia até duas quadras da tua escola todas as manhãs para abrir um açougue. Tu namoraste com ele um ano inteiro escondido de mim e do teu pai. O moço tinha boas intenções e queria noivar contigo, mas tu acabaste o namoro com ele...
- Por isso eu mereci ser amaldiçoada? Porque, aos 16 anos, cansei de um namorado?
- Não, Louise, tu foste para praia. Não avisaste nada ao rapaz, deixaste ele ir te procurar. Estavas aprovada no vestibular em Porto Alegre e não ias nem dar satisfação a ele. Tu usaste ele, Louise, pegando caronas o ano todo, conseguindo o que querias e depois descartando-o.
- Isso não é verdade.
- Então, se não é, qual das tuas amigas sabia que tu namoravas com ele? Neste meio tempo, tu nunca tiveste nem paqueras com outros rapazes?
- Mãe, eu tinha 16 anos...
- Está bem. Vamos adiante. Então, o que dizer do Rui Carrara?
Este nome não trazia absolutamente nenhuma lembrança agradável a Louise. Deveria ter sido o momento mais conturbado que viveu, que estava já perdendo feio para este de agora.
- Senhor... Eu não gostaria de ouvir isto...
Tampouco seu pai. Esta história não havia descido nem atravessado os ouvidos do pai e ele sentia uma ponta de decepção enorme com Louise pela filha ter se envolvido com um homem casado e muito mais velho. Por ter o nome da família ecoado em fofocas por toda a cidade de Caçapava. Mas, Augusta continuava:
- Então, quando tu resolveste que cursarias Turismo em Porto Alegre, que ias embora para lá... Te decepcionaste comigo e com o teu pai porque não tínhamos dinheiro para te manter com luxo. Então, arrumaste um caso com Rui Carrara, que tinha idade para ser teu pai. Minha filha, todo mundo sabe que tu enlouqueceste aquele cara, aos 63 anos, uma linda menina dando mole para ele. Todo mundo sabe que ele pagou a tua faculdade. Todo mundo sabe que ele morreu e deixou a esposa com três filhos, dois mais velhos do que tu. Todo mundo sabe que o Rui morreu por tua culpa, nem os filhos foram ao velório. Eles nunca perdoaram Rui por ter se envolvido contigo.
Desta vez, Louise nada falou.
- Depois, quando tu começaste a namorar o teu marido e eu achei que tudo tinha sido uma fase ruim da tua juventude, que ia ficar tudo bem, que tu estavas amadurecendo e, é claro que estranhei, porque não pensei que tu ficarias tão rica de repente... Mas achei que tudo se encaminhava bem, juro que achei que tu não estavas te aproveitando do dinheiro do Tomás, mas aí teve o Thiago.
- Eu não sei por que estou aqui escutando tudo isso hoje, mas não vou ouvir nenhuma palavra sobre o Thiago.
- Está certo, Louise, não vou te dar mais nenhum sermão, mas naquela noite eu não te amaldiçoei, eu só pedi que pensasses um pouco mais nos outros, que parasses de manipular as pessoas. Que vivesses a tua vida de forma independente, mas tu não querias ouvir as minhas explicações. Eu disse para que tu te colocasses no lugar de todas essas pessoas. Estavas me referindo ao Éder, ao Rui, ao Thiago e até ao próprio Tomás. Disse para pensares se alguém tivesse feito para ti o que fizeste para eles. Como tu te sentirias? E disse a ti estas palavras: "um dia, a vida pode te cobrar". Mas, pelo jeito, tu não ouviste.
- Se eu sou esse monstro todo que tu pensas, mamãe, é melhor ir embora.
- Por várias vezes na minha vida, eu virei as costas e saí andando, te deixei fazer o que querias. Mas, agora não vou. Não estou te cobrando nada, não estou te julgando, estou apenas te explicando que eu nunca te amaldiçoei. Este momento é o mais difícil da tua vida. Vais precisar de mim para te ajudar com as crianças.
- Filha, vai ficar tudo bem. Chega destas discussões - Paulo abraçou a filha.
- Está certo, eu mesma tenho tanta coisa para fazer que nem sei por onde começar. Lauren quer falar comigo, preciso ir a Porto Alegre, mas acho que vou deixar para amanhã. Mãe, não haverá mais nenhum momento sobre o passado enquanto estiveres aqui.
- De acordo. Agora, por que não descansas um pouco? Faz uma refeição e toma um calmante. Deixa as crianças comigo e com o teu pai.
Louise concordou. Tomou o chá que a mãe lhe preparou. Mal engoliu um croissant e tomou um calmante. Entrou no quarto, mas nem pensou em dormir. A mãe lhe deu muito no que pensar.