Eu flutuo no ar frio da velha mansão, um fantasma em minha própria tragédia.
Três anos. Faz três anos que morri aqui.
Para o mundo, eu sou Luana, a garota que se jogou no poço. Uma história de terror barata para assustar turistas.
Mas esta noite, minha família está aqui. Eles não vieram rezar por minha alma.
Vieram para me expor.
Minha mãe, Helena, está abraçada à minha irmã adotiva, Sofia. A câmera de uma transmissão ao vivo foca em seu rosto, contorcido de dor e raiva.
"Ela era uma ingrata," diz minha mãe, com a voz embargada. "Nós a amávamos, demos tudo a ela, e ela nos traiu. Ela tentou destruir nossa Sofia."
Sofia, aninhada em seus braços, soluça suavemente, o retrato da inocência ferida.
Meu irmão, Tiago, está ao lado delas. Seus punhos estão cerrados.
"Luana era um ser desprezível," ele rosna para a câmera. "Tudo o que ela fez foi para prejudicar a Sofia. Ela tinha inveja porque nós amávamos a Sofia de verdade."
Meu pai, Ricardo, completa o quadro de ódio. Seus ombros estão curvados, não pela dor da perda, mas pelo peso da vergonha que eles acreditam que eu causei.
"Eu gostaria que ela estivesse morta de verdade," ele diz, com a voz baixa e cheia de veneno. "Pelo menos assim, nosso sofrimento acabaria."
Mal sabe ele que seu desejo já foi atendido.
A transmissão ao vivo é comandada por um homem chamado Zé Coragem. Ele se autointitula um "caçador de mitos". Um showman barato da internet, contratado pela minha família para provar ao mundo que minha morte foi uma farsa, que eu fugi para viver uma vida de devassidão e que o fantasma da mansão não passa de uma mentira.
Eles querem apagar até a minha memória.
A câmera passeia pela sala principal da mansão abandonada. Poeira cobre os móveis antigos, teias de aranha pendem do teto como mortalhas. Este lugar, que já foi meu lar, agora é um circo de horrores transmitido para milhares de pessoas.
Os comentários na tela rolam freneticamente.
"Essa Luana era um monstro!"
"Coitada da Sofia, sofreu tanto."
"Zé, acaba com essa farsa! Mostra pra todo mundo quem essa garota realmente era."
"A família é a maior vítima aqui. Perder uma filha e ainda ser enganado assim."
Eu observo tudo, uma espectadora silenciosa da minha própria difamação. Uma parte de mim, a parte que ainda se lembra de como é sentir, quer gritar. Quer dizer a eles que estão errados, que a vítima sempre fui eu.
Mas fantasmas não têm voz.
Minha mãe aperta mais o braço de Sofia, como se para protegê-la de minha influência maligna.
"Zé, por favor," ela implora ao apresentador. "Encontre as provas. Mostre ao mundo que não estamos loucos. Mostre a eles a verdade sobre a Luana."
Zé Coragem sorri para a câmera, um sorriso cheio de falsa confiança.
"Não se preocupem, Dona Helena," ele diz, com sua voz de locutor de rádio. "Nós vamos até o fundo disso. Hoje, a verdade será revelada. O mito de Luana, a 'pobre alma penada', vai acabar de uma vez por todas."
Ele se vira e caminha em direção ao jardim dos fundos, onde a escuridão engole a maior parte da paisagem.
Onde o velho poço me espera.
Eles não sabem, mas a verdade que eles procuram está lá.
Não a verdade deles.
A minha.
E ela é muito mais terrível do que qualquer história de fantasma que eles possam imaginar.