"O coração do bebê está fraco. Precisamos tirá-lo agora" , ele disse, sua voz profissional e fria.
"Doutor, a condição dela é instável. Uma cesariana de emergência é arriscada para a mãe" , alertou o anestesista.
Ricardo olhou para o colega, seus olhos eram gelo puro.
"Conserve a criança, abandone a adulta."
A frase ecoou na sala e no meu cérebro em chamas. Abandone a adulta. Eu era descartável. Um recipiente quebrado que não servia mais.
A enfermeira que preparava meu braço para a anestesia tinha lágrimas nos olhos. Ela sussurrou um "sinto muito" que mal pude ouvir.
Eles colocaram a máscara no meu rosto. Eu lutei, mas estava fraca demais. Enquanto o gás me envolvia, eu senti o primeiro corte do bisturi de Ricardo. Uma dor afiada, brutal. Ele nem esperou a anestesia fazer efeito completo.
E então, algo estranho aconteceu. A dor não desapareceu, mas eu me separei dela. Senti como se minha consciência estivesse flutuando para cima, em direção ao teto. Eu olhei para baixo e vi a cena como se fosse um filme.
Vi meu próprio corpo na mesa de operação, aberto e sangrando. Vi Ricardo trabalhando com uma concentração febril, suas mãos habilidosas movendo-se rapidamente para tirar o bebê. Vi Helena na porta, roendo as unhas, ansiosa.
Eu não sentia mais nada. Nem dor, nem medo, nem raiva. Apenas um vazio vasto e pacífico. Eu estava morrendo. E pela primeira vez em meses, eu senti uma espécie de alívio. A tortura estava acabando.
Eles tiraram o bebê, uma menina pequena e frágil. Ela não chorou. Eles a levaram para uma incubadora, trabalhando freneticamente para reanimá-la.
Meu corpo na mesa continuava a sangrar. O monitor cardíaco começou a apitar, um som longo e contínuo.
Eu estava morta.
Minha alma, ou o que quer que fosse, flutuou ali, observando. Vi Ricardo finalmente se virar para o meu corpo sem vida. Ele olhou para o meu rosto pálido e, pela primeira vez, a máscara de frieza dele rachou. Uma expressão de... algo que eu não conseguia decifrar. Não era amor, não era remorso. Era outra coisa.
Ele se aproximou e, com uma delicadeza que me chocou, afastou uma mecha de cabelo do meu rosto. Ele tocou minha bochecha.
"Sofia" , ele sussurrou. "Descanse agora. Você fez o que tinha que fazer."
Era bizarro. Era doentio. Ele falava com meu cadáver como se eu pudesse ouvi-lo.
Enquanto ele falava, uma das enfermeiras gritou da incubadora: "Ela está respirando! A menina está respirando!"
Um sorriso aliviado apareceu no rosto de Ricardo. Ele se virou para o bebê, sua atenção completamente desviada de mim.
Eu, a alma, me senti pronta para partir. Para ir para onde quer que meu filho estivesse me esperando. Mas algo me segurou. Uma corda invisível me prendia a esta sala, a este mundo.
E então, para o meu horror absoluto, eu vi acontecer. Meu corpo na mesa de cirurgia se moveu. Um dedo tremeu. Depois outro. Meus olhos se abriram, mas estavam vazios. Sem vida. Sem alma.
Meu corpo se sentou na mesa, o lençol ensanguentado caindo. As enfermeiras gritaram. Ricardo se virou, chocado.
Ele olhou para o meu corpo reanimado, para os olhos vazios que o encaravam sem ver. Eu, a alma, gritei em silêncio. Eu estava presa. Presa entre a vida e a morte, forçada a assistir meu próprio corpo se tornar um zumbi, um fantoche nas mãos do homem que destruiu minha vida.