Foi nesse ambiente que conheci Bianca.
Ela não trabalhava no restaurante.
Ela era a sommelier de uma vinícola boutique nos arredores da cidade.
Vinha uma vez por semana para apresentar novos vinhos ao Seu Afonso.
Ela era inteligente, apaixonada pelo que fazia.
Falava sobre uvas e terroir com um brilho nos olhos que eu reconhecia, pois era o mesmo brilho que eu tinha quando falava sobre comida.
Ela me notou na cozinha.
Ela provou um prato que eu tinha feito, um ensopado de frutos do mar que Seu Afonso me deixou preparar como especial do dia.
"Isso é... incrível", ela disse, se aproximando do balcão da cozinha. "Quem fez isso?"
Seu Afonso apontou para mim com o queixo.
"Foi o Pedro. Ele é meu novo ajudante."
Bianca me olhou, um sorriso genuíno no rosto.
"Ajudante? Com uma mão dessas, você deveria ser o chef. Prazer, sou Bianca."
"Pedro", eu respondi, secando as mãos no avental.
Nós começamos a conversar.
Toda semana, quando ela vinha, passava mais tempo conversando comigo do que com Seu Afonso.
Falávamos sobre comida, vinho, sobre a química entre sabores e aromas.
Era fácil conversar com ela.
Não havia jogos, nem segundas intenções.
Apenas uma conexão genuína baseada em uma paixão compartilhada.
Um dia, enquanto eu explicava como tinha aprendido a fazer um confit de pato perfeito, parei no meio da frase.
Lembrei-me de ter passado semanas aperfeiçoando aquela receita.
Porque era o prato favorito de Ana.
Eu o fiz para ela em um de nossos aniversários.
Ela mal tocou nele.
Estava muito ocupada respondendo mensagens de Lucas no celular debaixo da mesa.
"Pedro? Você está bem?", a voz de Bianca me trouxe de volta ao presente.
Eu forcei um sorriso.
"Sim, desculpe. Apenas uma lembrança."
Ela não pressionou.
Ela tinha uma sensibilidade que Ana nunca possuiu.
Ela parecia entender que havia uma história ali, uma que eu não estava pronto para contar.
Algumas semanas depois, Bianca apareceu no restaurante no final do meu turno.
"Ei, chef", ela disse, encostada no batente da porta da cozinha.
"Oi, Bianca. O que te traz aqui a esta hora?"
"Eu tenho um favor a pedir", ela disse, parecendo um pouco hesitante. "Minha família está dando uma festa amanhã à noite, na nossa casa. É uma coisa grande. E nosso chef de catering cancelou de última hora."
Eu já sabia onde isso ia dar.
"Não, Bianca. Eu não posso."
"Por quê? Eu pago o que você pedir. Você é dez vezes melhor do que o cara que contratamos. Por favor, Pedro. Você salvaria minha vida."
A ideia de cozinhar para uma festa grande, de voltar para aquele mundo de eventos sociais e aparências, me encheu de pavor.
Era o mundo de Ana.
O mundo do qual eu tinha fugido.
"Eu não sou mais esse tipo de chef", eu disse, minha voz baixa. "Eu só... lavo pratos e pico legumes agora."
"Isso é uma mentira e nós dois sabemos disso", ela retrucou, sua voz suave, mas firme. "Eu não sei do que você está fugindo, Pedro, mas você não pode se esconder na cozinha do Seu Afonso para sempre. É só uma noite. Por favor."
Eu olhei para o rosto dela, para a sinceridade em seus olhos.
Ela não estava pedindo por pena.
Ela estava pedindo porque acreditava no meu talento.
Talvez ela estivesse certa.
Talvez eu não pudesse me esconder para sempre.
"Tudo bem", eu suspirei, derrotado. "Eu faço."
O sorriso que ela me deu valeu a pena.
"Ótimo! Eu te pego amanhã às duas. E, Pedro... obrigado."
No dia seguinte, pontualmente às duas, um carro luxuoso parou em frente ao meu chalé.
Bianca estava ao volante.
"Pronto para a cidade grande?", ela brincou.
Eu não sabia o quão literal era essa pergunta.
Dirigimos por cerca de meia hora, saindo da pequena cidade costeira e subindo por colinas verdejantes.
Chegamos a um portão imponente de ferro forjado.
Um segurança nos cumprimentou pelo nome e os portões se abriram, revelando uma propriedade vasta e impecável.
Uma vinícola.
E no topo da colina, uma mansão que parecia ter saído de uma revista de arquitetura.
Eu olhei para Bianca, chocado.
"Você não me disse que sua família... era essa família."
Ela sorriu, um pouco envergonhada.
"Eu sou a sommelier, lembra? Achei que estivesse implícito."
Eu engoli em seco.
Eu tinha saído do mundo dos ricos e influentes apenas para cair de cabeça nele novamente.
E uma sensação ruim começou a se formar na boca do meu estômago.
Algo me dizia que a noite não seria tão simples quanto apenas cozinhar.