O Filho, O Legado
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Capítulo 1

O barulho na sala de desenvolvimento era quase insuportável, não pelo som dos teclados ou das conversas sobre códigos, mas pela cena que se desenrolava no centro do espaço. Patrícia, minha ex-melhor amiga, segurava seu filho pequeno no colo, o filho que ela teve com Marcos, meu ex-noivo, e ria alto, como se fosse a dona do lugar. E, de certa forma, ela era. Ela e Marcos tinham tomado tudo de mim.

O menino, de uns quatro anos, correu em direção a uma das mesas e quase derrubou um monitor caro.

"Cuidado, meu amor!", Patrícia gritou, com uma voz melosa que me revirava o estômago.

Ela o pegou no colo de novo, beijando seu rosto e o balançando.

"A mamãe e o papai construíram tudo isso para você, sabia? Um dia, tudo isso será seu."

A frase foi dita para a criança, mas seus olhos me encontraram do outro lado da sala. Foi uma provocação direta, uma faca girando na ferida que eles abriram cinco anos atrás. Os funcionários ao redor, muitos dos quais eu mesma contratei, sorriam e elogiavam a criança.

"Que menino lindo, Patrícia!"

"Ele é a cara do Marcos, um futuro CEO!"

Eles a tratavam como uma rainha, a esposa do chefe, a mãe do herdeiro. Para eles, eu era apenas Ana, uma desenvolvedora sênior que, por alguma razão misteriosa, havia retornado à empresa que um dia fundou como uma mera funcionária. Ninguém ali sabia da verdade, ninguém sabia que cada linha de código do jogo que era a galinha dos ovos de ouro da empresa, "Crônicas Astrais", saiu dos meus dedos, das minhas noites em claro.

Minha mente voltou no tempo, para as noites em que eu e Marcos sonhávamos juntos. Eu codificava até o amanhecer, movida a café e paixão, enquanto ele cuidava da parte de negócios. "Nós vamos conquistar o mundo, Ana", ele dizia. E Patrícia, minha melhor amiga, era nossa maior incentivadora, sempre trazendo lanches, ouvindo meus desabafos. Mal sabia eu que, pelas minhas costas, os dois estavam construindo um plano para me destruir. Eles registraram a empresa e as patentes dos jogos apenas no nome de Marcos, usando uma procuração que assinei sem ler direito, grávida e confiando cegamente no homem que amava. Quando o jogo estourou, eles me expulsaram com a desculpa de "diferenças criativas", me deixando sem nada, grávida e sozinha.

O som da voz de Patrícia me trouxe de volta ao presente. Ela caminhava na minha direção, o sorriso falso estampado no rosto.

"Ana, querida! Que bom que você voltou. Fiquei sabendo que está trabalhando no novo pacote de expansão. O Marcos me disse que você tem umas ideias ótimas."

Ela se inclinou, como se fosse compartilhar um segredo.

"Que tal você me passar um resumo das novas mecânicas? Sabe, só para eu ficar por dentro, ajudar o Marcos a tomar as melhores decisões."

Ela queria roubar minhas ideias de novo, na minha cara, como se eu fosse a mesma garota ingênua de cinco anos atrás. A velha Ana teria concordado, com o coração partido, mas ainda tentando agradar. A nova Ana, não.

Eu levantei meu olhar do meu monitor e a encarei, fria como o gelo.

"Não."

A palavra foi curta, seca. O sorriso de Patrícia vacilou por um segundo.

"Como?"

"Eu disse não", repeti, minha voz calma, mas firme. "Meu trabalho é confidencial e reporto apenas à equipe designada. Você não faz parte dela."

O choque no rosto dela foi delicioso. Ela não esperava por isso. Antes que pudesse responder, seu filho, provavelmente sentindo a tensão, ficou agitado e derramou o copo de suco que segurava, o líquido pegajoso escorrendo pela minha mesa e molhando a barra da minha calça.

"Oh, meu Deus! Desculpe!", Patrícia disse, mas não havia desculpa em seu tom. Havia um brilho de triunfo em seus olhos. Ela queria me humilhar, me fazer perder a compostura na frente de todos.

Os funcionários olharam, alguns com pena, outros com um prazer mal disfarçado. Patrícia pegou um guardanapo, fazendo um show de tentar limpar a bagunça.

"Ele é só uma criança, Ana. Não precisa ficar tão brava."

Eu não disse nada. Calmamente, peguei minha garrafa de água da mesa, uma daquelas de metal, cara e elegante. Abri a tampa e, com um movimento que pareceu totalmente acidental, "tropecei" levemente, derramando toda a água gelada dentro da bolsa de grife de Patrícia, que estava aberta no chão ao lado dela. Uma bolsa de couro que custava mais do que o salário de um desenvolvedor júnior.

Um grito agudo escapou dos lábios dela.

"Minha bolsa! Você fez isso de propósito!"

Eu a olhei com a maior inocência que consegui fingir.

"Oh, meu Deus! Desculpe, Patrícia. Sou tão desastrada. Mas é só água, não é? Sai fácil."

Usei as mesmas palavras que ela, a mesma falsa preocupação. O rosto dela ficou vermelho de raiva. A humilhação que ela planejou para mim se voltou contra ela, de forma pública e inegável.

Sem esperar por sua reação, peguei minha bolsa e meu casaco.

"Preciso ir. Tenho um compromisso importante", anunciei para ninguém em particular e saí da sala, deixando para trás o caos, o choro da criança e o olhar furioso de Patrícia.

Do lado de fora, o ar frio de São Paulo pareceu limpar meus pulmões. Peguei meu celular e disquei um número.

"Alô, Dr. Almeida?"

"Ana. Estava esperando sua ligação. Está tudo pronto?"

"Sim", respondi, minha voz firme, sem qualquer traço da emoção que senti lá dentro. "Pode executar. Notifique o conselho e congele os ativos. Quero o controle majoritário até o fim do dia."

Ouvi alguns papéis se mexendo do outro lado da linha. "Considera feito. Marcos nem saberá o que o atingiu."

Enquanto eu caminhava para o meu carro, dois funcionários que saíam para fumar passaram por mim, falando baixo.

"Você viu a cena da Ana? Que ridícula. Derramou água na bolsa da Patrícia só por causa de um pouco de suco. A inveja é uma coisa terrível."

Eu sorri para mim mesma. Deixem que pensem. Deixem que subestimem. Eles não faziam ideia do que estava por vir. Meu celular vibrou. Era Marcos. Atendi.

"ANA, VOCÊ FICOU LOUCA? O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO? HUMILHANDO A PATRÍCIA E MEU FILHO NA FRENTE DE TODO MUNDO?"

Sua voz era um rugido de fúria e arrogância. Ele ainda achava que tinha todo o poder.

"Eu só estava limpando a bagunça, Marcos", respondi calmamente. "Algo que eu deveria ter feito há muito tempo."

Desliguei o telefone antes que ele pudesse gritar mais. Entrei no meu carro, um modelo de luxo que ele nem sonhava que eu poderia comprar, e dei a partida. Um sorriso frio e genuíno finalmente se formou em meus lábios. A primeira peça do dominó havia caído. Eu mal podia esperar para ver a expressão no rosto dele quando descobrisse que a empresa que ele roubou de mim estava prestes a voltar para sua verdadeira dona.

            
            

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