A porta se abriu com a minha antiga chave. O cheiro era diferente. Não era mais o meu cheiro, de lavanda e livros velhos. Era o perfume doce e enjoativo de Patrícia. A primeira coisa que vi foi um porta-retratos gigante na parede da sala. Marcos, Patrícia e o filho deles, sorrindo, na praia. Onde antes havia uma pintura que eu amava, agora estava a imagem da família que me substituiu.
Caminhei pela casa como um fantasma. Cada cômodo era uma nova facada. Meus livros de arte e programação haviam sumido das prateleiras, substituídos por revistas de fofoca e decoração barata. Na cozinha, os utensílios que escolhi com tanto cuidado foram trocados por um jogo de jantar rosa e dourado, terrivelmente brega. Era como se tivessem passado uma borracha em toda a minha existência naquele lugar.
No canto do que era para ser o meu escritório, encontrei uma caixa de papelão empoeirada. Dentro dela, jogado de qualquer jeito, estava o "Urso Programador", um bicho de pelúcia que Marcos me deu no nosso primeiro aniversário de namoro, quando eu passei a noite inteira corrigindo um bug crítico no nosso primeiro protótipo. Ele usava um óculos de mentira e uma camiseta que eu mesma fiz, com a inscrição "01000001 01101110 01100001" em código binário. Ana. Ele estava sujo, um dos olhos de botão pendurado por um fio. Peguei-o nas mãos e senti um nó na garganta. Era o último vestígio daquele amor que eu acreditei ser real.
Subi as escadas, meu coração pesado. O quarto principal era a pior parte. Minhas roupas, meus perfumes, tudo havia desaparecido do closet. No lugar, estavam os vestidos justos e curtos de Patrícia, seus sapatos de salto agulha alinhados em fileiras intermináveis. Sobre a cama que um dia foi nossa, havia um roupão de seda dela. E na mesinha de cabeceira, ao lado da cama onde eu dormia, uma foto de Patrícia, grávida, com Marcos beijando sua barriga. A mesma pose da foto que tiramos quando eu estava grávida do nosso filho. A bile subiu pela minha garganta.
Foi nesse momento que uma lembrança me atingiu em cheio. Lembrei-me de uma noite, pouco antes de tudo desmoronar. Marcos chegou em casa com uns papéis, dizendo que eram apenas formalidades para a reestruturação da empresa, para "proteger nossos ativos". Eu estava exausta, nos últimos meses de gravidez, e assinei onde ele apontou, sem questionar. Lembrei-me do jeito que Patrícia olhou para os papéis, um brilho estranho em seus olhos, que na época interpretei como orgulho por nós. Agora, a verdade me atingia como um soco. Não era orgulho. Era ganância. Eles planejaram cada passo.
A raiva, fria e pura, tomou conta de mim. Desci as escadas, peguei o celular e disquei o número de uma empresa de mudanças e descarte.
"Boa tarde. Preciso de um serviço de limpeza completa de uma residência. Para agora. Sim, tudo. Quero que tirem cada móvel, cada peça de roupa, cada objeto. Quero as paredes nuas. Pago o triplo da taxa de urgência."
Enquanto esperava a equipe chegar, mandei uma mensagem para Marcos.
"Estou na nossa antiga casa. Decidi fazer uma limpeza. Se quiser alguma coisa daqui, sugiro que venha buscar nas próximas duas horas."
A resposta dele não demorou e foi exatamente como eu esperava.
"Você não tem o direito de estar aí. Essa casa é minha. Pare com esse showzinho patético, Ana. Se tocar em alguma coisa da Patrícia, eu te processo."
Eu não respondi. Quando a equipe de descarte chegou, homens fortes e eficientes, eu dei uma única instrução.
"Tirem tudo. Podem levar, doar, queimar. Não me importa. Só quero este lugar vazio."
Fiquei sentada na escada, segurando o Urso Programador, e assisti minha vida antiga ser desmontada e carregada para fora, peça por peça. O sofá onde planejamos nosso futuro. A mesa onde jantamos tantas vezes. A cama onde o concebemos. Tudo se foi. Quando o closet foi esvaziado, vi algo que não pertencia a Patrícia. No fundo de uma gaveta, meus diários de desenvolvimento, os cadernos onde eu anotei cada ideia, cada algoritmo, cada esboço de "Crônicas Astrais". Eles nem se deram ao trabalho de jogar fora a prova do crime. Peguei-os e os coloquei na minha bolsa.
Horas depois, a casa estava oca, um eco de si mesma. O cheiro de Patrícia havia sumido, substituído pelo cheiro de poeira e vazio. Meu celular tocou de novo. Era Marcos, sua voz um grito distorcido de raiva.
"O QUE VOCÊ FEZ? A PATRÍCIA FOI PARA CASA E NÃO TEM NADA! NADA! VOCÊ VAI PAGAR POR ISSO, ANA! VOCÊ ESTÁ LOUCA!"
"Eu só limpei a casa, Marcos. Tirei o lixo", respondi, minha voz mortalmente calma.
Patrícia, sem surpresa, foi para o Instagram. Postou uma foto antiga dela e de Marcos, sorrindo, com a legenda: "Não importa o que as pessoas invejosas tentem fazer para nos destruir, nosso amor e nossa família são mais fortes. Alguns só sabem destruir o que não podem ter." A publicação rapidamente se encheu de comentários de apoio e pena.
Eu olhei para a postagem e sorri. Que tola. Ela não entendia que sua tentativa de me humilhar publicamente era, na verdade, um presente. Meu advogado me explicou: ao se exibir como a "dona da casa" e ao Marcos permitir, eles criaram um registro público de que ele havia abandonado o lar conjugal original e constituído uma nova família em outro lugar, enquanto eu mantinha meus laços legais com a propriedade. Isso facilitaria imensamente a divisão de bens. A postagem dela no Instagram era a cereja do bolo, uma prova da alienação do patrimônio.
Meu celular apitou. Não era Marcos. Era um e-mail oficial do tribunal. Abri-o, meu coração batendo um pouco mais rápido.
"Assunto: Deferimento de Medida Cautelar."
Li as palavras que esperei por cinco anos para ver. O juiz havia concedido a liminar. Com base nas provas preliminares que apresentei – meus diários de desenvolvimento, a procuração fraudulenta, os registros financeiros – as ações majoritárias da empresa e todas as propriedades intelectuais de "Crônicas Astrais" estavam congeladas e sob minha tutela provisória, até o julgamento final do caso. Marcos não podia vender, transferir ou fazer qualquer coisa. O controle, por enquanto, era meu.
Fui até a cozinha agora vazia, peguei o Urso Programador e o coloquei no balcão de mármore, a única coisa que restou. Tirei da minha bolsa uma pequena garrafa de champanhe e uma taça. Abri-a com um estouro que ecoou pela casa vazia. Servi-me, levantei a taça para o urso de pelúcia e bebi o líquido borbulhante e vitorioso. A guerra havia apenas começado, mas a primeira grande batalha era minha.