A porta do quarto se abriu com um clique suave. Heitor entrou. Ele era alto, imponente, o terno caro moldando um corpo forte. Seus olhos escuros a examinaram, frios e analíticos, como se avaliasse um objeto.
"Você não comeu de novo", ele constatou, o tom sem inflexão. A bandeja com o jantar intocado estava na mesinha ao lado da cama.
Clara não respondeu. Aprendeu que o silêncio irritava menos do que a resposta errada.
Ele se aproximou, e ela sentiu o cheiro caro do seu perfume misturado com o cheiro de poder. Ele pegou o pulso dela, os dedos fortes apertando. "Você quer voltar para lá, Clara? É isso?"
O medo, um velho conhecido, subiu por sua espinha, mas seu rosto permaneceu uma máscara de indiferença. Era a única defesa que lhe restava.
De repente, batidas leves soaram na porta. Era Sofia, a noiva de Heitor. A mulher que Heitor dizia ser um exemplo para Clara, um modelo de perfeição. Para Clara, Sofia era um veneno doce.
"Heitor, querido? O jantar está na mesa", a voz dela era melódica, mas arranhou os ouvidos de Clara.
Sofia entrou, um sorriso radiante no rosto. Ela usava um vestido branco que a fazia parecer um anjo. Ela olhou para a bandeja de comida e depois para Clara com uma falsa preocupação.
"Oh, Clara, você precisa se alimentar. Heitor fica tão preocupado com você."
Sofia pegou um copo de suco da bandeja, como se fosse ajudar. "Tome, pelo menos um pouco."
Ela se moveu em direção a Clara, mas seus pés "tropeçaram" no tapete. O suco gelado voou, encharcando a blusa simples de Clara. O choque do líquido frio foi como um gatilho.
Clara deu um pulo para trás, o corpo tremendo, os olhos arregalados de pânico. Aquele gesto, o líquido sendo jogado nela, a transportou de volta para a instituição. Para a sala fria, para os castigos com baldes de água gelada no inverno.
"O que diabos você está fazendo?", a voz de Heitor explodiu, não para Sofia, mas para Clara.
Ele viu o pulo, o pânico, e interpretou como um ato de agressão, de repulsa contra Sofia. O anjo inocente.
Sofia se encolheu, os olhos cheios de lágrimas. "Eu... eu só queria ajudar. Eu não sei por que ela me odeia tanto, Heitor."
Heitor agarrou o braço de Clara com força, a raiva deformando seu rosto bonito. "Você está testando a minha paciência. Depois de tudo que eu fiz por você, você ousa tratar Sofia assim?"
Clara tentou falar, dizer que foi um acidente, que foi o susto, mas sua garganta se fechou. O trauma era uma mordaça.
"Arrume suas coisas", Heitor disse, a voz baixa e cortante. "Você vai voltar para a escola. Parece que seu tratamento ainda não acabou."
Aquelas palavras foram a sentença. A instituição não era uma escola, era o inferno. Um lugar de onde ela quase não saiu viva da última vez. O mundo de Clara desabou em silêncio. A punição tinha chegado, rápida e implacável.
Ele a arrastou para fora do quarto, passando por Sofia, que o olhava com uma tristeza vitoriosa.
Os dias que se seguiram foram um borrão de dor. A instituição era exatamente como ela se lembrava. As paredes cinzas, o cheiro de desinfetante e desespero. Os "tratamentos" eram sessões de tortura disfarçadas. Eles a deixavam com fome, a forçavam a ficar em posições dolorosas por horas, a humilhavam de formas que quebravam o espírito.
Heitor não a visitou. Ele a deixou lá para ser "consertada".
Quando ela finalmente voltou, semanas depois, era uma casca vazia. Mais magra, com olheiras profundas e uma nova camada de dormência cobrindo sua alma.
Sofia agora morava na casa. Ela tinha seu próprio quarto, mas passava a maior parte do tempo com Heitor. Ela tratava Clara com uma doçura calculada, sempre na frente de Heitor, oferecendo ajuda que era, na verdade, uma forma de exibir seu poder.
"Clara, querida, você quer que eu peça para a cozinheira fazer aquela sopa que você gosta?", ela perguntava, sabendo que Clara tinha perdido o apetite.
Clara apenas balançava a cabeça, submissa. A luta havia sido esmagada dentro dela. Ela obedecia a tudo. Comia quando mandavam, dormia quando mandavam, sentava-se em silêncio na sala enquanto Heitor e Sofia agiam como um casal feliz.
À noite, ela se deitava na cama e olhava para o teto. A dor era uma companhia constante, uma dor física e emocional que se misturavam. Sua única esperança era fugir.
Secretamente, ela começou a juntar o pouco dinheiro que Heitor lhe dava para "pequenas despesas". Eram migalhas, mas ela guardava cada centavo. Ela escondeu o dinheiro dentro de um livro velho. Seu plano era simples: comprar uma passagem de ônibus para qualquer lugar longe dali. Um lugar onde ninguém soubesse seu nome.
Uma noite, enquanto Heitor e Sofia estavam fora, Clara pegou o livro. Contou o dinheiro. Quase o suficiente. A sensação de esperança era tão rara que doía.
Naquela noite, ela sonhou com o orfanato. Com o dia em que Heitor apareceu. Ele era mais jovem, sorria para ela. Ele lhe prometeu uma vida boa. Uma família. Ela acordou com o rosto molhado de lágrimas.
No dia seguinte, durante o café da manhã, um dos empregados, um rapaz novo, deixou uma bandeja de copos cair perto dela. O barulho de vidro quebrando ecoou pela sala.
Clara se encolheu violentamente, as mãos cobrindo a cabeça, um gemido baixo escapando de seus lábios. A reação foi instantânea, um reflexo condicionado pela dor. Na instituição, o som de algo quebrando geralmente precedia uma punição.
Heitor, que estava lendo o jornal, levantou a cabeça. Seus olhos se estreitaram. Ele não viu o medo dela. Ele viu desafio. Ele viu uma cena.
Sofia correu para o lado de Clara. "Clara, você está bem? Foi só um acidente."
Mas Clara não a ouvia. Ela estava presa no passado, tremendo incontrolavelmente. Heitor se levantou, a cadeira arrastando ruidosamente no chão. Ele caminhou até ela, a sombra dele a cobrindo.
"Chega desse teatro, Clara", ele disse, a voz perigosamente calma. "Levante-se."
Clara não se moveu. Ela não conseguia.
A mão de Heitor agarrou seu cabelo, forçando-a a olhar para ele. A dor aguda a trouxe de volta à realidade. Ela viu o rosto dele, contorcido de raiva.
"Eu disse, levante-se."