Essa promessa infantil se tornou a base da minha vida. Meus pais morreram em um acidente de carro quando eu tinha dezesseis anos, e a família Oliveira me acolheu. Eles me deram um teto, comida, e a ilusão de uma família. Eu era grato, tão grato que ignorei todos os sinais de alerta.
Eu me dediquei aos estudos com um único objetivo: me tornar um grande médico, dar a Sofia a vida que ela merecia, honrar a confiança que os pais dela depositaram em mim. Quando passei no vestibular para medicina, a Sra. Oliveira chorou e disse que eu era como um filho. O Sr. Oliveira me deu um tapinha nas costas e disse que eu era o orgulho da família.
Sofia, na época, parecia feliz por mim. Ela me apoiava, me trazia lanches durante as longas noites de estudo. Ela era a minha inspiração. Todo o meu esforço, todo o meu sacrifício, era por ela.
Mas as coisas começaram a mudar quando ela entrou na faculdade de administração. Ela começou a falar sobre status, sobre contatos, sobre a importância de "estar no topo". Eu, imerso nos livros de anatomia e fisiologia, não dei muita atenção. Achava que era apenas a ambição natural dela.
Ela ficava irritada quando eu não podia ir a festas caras por causa de um plantão. Reclamava que minhas roupas eram simples demais. "Você precisa se vestir como um médico de sucesso, Ricardo, não como um estudante pobretão," ela dizia.
Eu tentava explicar que estava economizando, que o futuro era mais importante. Mas para ela, o presente era tudo.
A lembrança mais dolorosa veio à tona enquanto eu caminhava para o quarto de hóspedes. Foi há alguns meses, quando recebi o prêmio de melhor residente do hospital. Eu estava tão feliz, tão orgulhoso. Cheguei em casa com o troféu na mão, esperando compartilhar minha alegria com ela.
Encontrei-a se arrumando para sair. Ela olhou para o troféu e forçou um sorriso. "Ah, que legal, querido. Parabéns. Agora, você pode me ajudar a fechar o zíper deste vestido? Estou atrasada para um evento de networking com o pessoal da empresa do Lucas."
Naquela noite, a diferença entre nossos mundos nunca pareceu tão grande. Eu, com meu troféu simbolizando anos de trabalho duro e dedicação à vida humana. Ela, obcecada com a aparência e conexões sociais. A acidez daquele momento voltou com força total.
Abri a porta do quarto de hóspedes. Minhas coisas estavam jogadas em caixas de papelão, sem nenhum cuidado. Livros, roupas, fotografias dos meus pais, tudo misturado. A visão era desoladora.
Enquanto isso, a voz de Ana ecoava na minha mente. "Você tem certeza sobre isso?" Sim, eu tinha. Qualquer coisa era melhor do que a humilhação de viver naquela casa, de amar uma mulher que me via como um objeto descartável.
Eu comecei a pegar as caixas, meu corpo se movendo no piloto automático. Meu diploma de médico, que eu tinha emoldurado com tanto orgulho, estava jogado em um canto, a moldura de madeira lascada. Aquele diploma, que Sofia tanto usou para se gabar para as amigas, agora era tratado como lixo.
Lembrei-me da minha decisão de alguns dias atrás, antes de tudo explodir. Eu havia recebido uma proposta para chefiar um pequeno departamento em um hospital em outra cidade, um lugar mais tranquilo, longe da pressão da capital. Era uma grande oportunidade de carreira.
Quando contei a Sofia, esperando que ela ficasse feliz por mim, sua reação foi de puro horror.
"O quê? Sair da cidade? Você está louco, Ricardo?" ela gritou. "E a minha carreira? Meus contatos? Você quer que eu jogue tudo fora para ir morar num fim de mundo?"
"Não é um fim de mundo, Sofia. É uma ótima oportunidade para mim, para nós," eu argumentei.
"Para você," ela corrigiu, com desprezo. "Você só pensa em você. Se você for, pode esquecer nosso noivado."
Na hora, eu pensei que ela estivesse apenas nervosa. Tentei argumentar, explicar, mas ela não quis ouvir. Dois dias depois, a encontrei aos beijos com Lucas em uma festa, e ela nem fez questão de esconder. Ela me humilhou na frente de todos, dizendo que estava cansada de "bancar o estudante pobre" e que finalmente tinha encontrado um homem de verdade.
Aquele foi o estopim. Aquele foi o momento em que a ficha caiu.
Eu saí da festa, desnorteado, e acabei em um bar. Foi lá que encontrei Ana. Ela estava sozinha, tomando uma cerveja, parecendo tão deslocada quanto eu. Começamos a conversar. Eu despejei toda a minha dor e humilhação. Ela ouviu, sem interromper.
Então, em um ato de loucura e desespero, eu fiz a proposta. "Case-se comigo."
Eu esperava que ela risse, que me mandasse embora. Mas ela apenas me olhou por um longo tempo e disse: "Por quê?"
"Eu preciso de uma saída. Preciso de algo que me force a cortar todos os laços," eu disse. "Será um contrato. Apenas no papel. Te ajudo com o que precisar, e você me ajuda a ter coragem para ir embora."
E, para minha surpresa, ela aceitou.
Agora, carregando as caixas com os restos da minha antiga vida, eu sabia que não era mais um ato de loucura. Era uma necessidade. Era sobrevivência.