Lembrei de todas as vezes que ela brigava com a família ou tinha um problema no trabalho, ela sempre me procurava, chorava no meu ombro, me usava como seu saco de pancadas emocional.
E eu, como um tolo, sempre a acolhia.
Uma memória específica veio à minha mente, de uns dois anos atrás.
Eu estava cansado da situação, da presença constante de Gabriel em nossas vidas.
Eu a chamei para conversar, com o coração na mão.
"Sofia," eu disse, com a voz falhando, "eu vejo o quanto você se importa com o Gabriel, e eu vejo como ele precisa de você."
Ela me olhou, desconfiada.
"Se você o ama, se você acha que o seu lugar é ao lado dele, eu vou entender, eu só quero que você seja feliz, mesmo que não seja comigo."
Eu estava oferecendo a ela uma saída, uma chance de ser honesta comigo e com ela mesma.
A reação dela não foi de alívio ou gratidão.
Foi de fúria.
"Como você ousa dizer uma coisa dessas? Você está me acusando de te trair? Você está insultando a nossa amizade, a minha dedicação a um amigo doente! Você é tão pequeno, Ricardo, tão inseguro!"
Ela virou o jogo contra mim, me fez sentir culpado por ter sequer sugerido aquilo, me fez sentir um monstro ciumento e possessivo.
E eu acreditei.
Pedi desculpas, implorei pelo perdão dela, prometi nunca mais tocar no assunto.
Agora, olhando para trás, eu via a manipulação clara em suas palavras.
A raiva borbulhou dentro de mim, uma raiva que eu nunca tinha sentido antes.
Fui para a cozinha e peguei uma garrafa de cerveja na geladeira, eram nove da manhã de uma segunda-feira.
Eu nunca bebia de manhã, nunca faltava ao trabalho.
Mas naquele dia, as regras não importavam mais.
Liguei para o meu chefe e inventei uma desculpa qualquer, disse que estava doente.
Passei o dia inteiro no sofá, bebendo e assistindo a filmes ruins, o celular desligado.
Perto das seis da tarde, a campainha tocou insistentemente.
Eu ignorei.
Então, meu interfone começou a tocar sem parar.
Era Sofia.
"Ricardo, abre a porta! Eu sei que você está aí! Onde você se meteu o dia todo? Fiquei preocupada!"
A voz dela soava irritada, não preocupada.
Eu continuei em silêncio.
"Ricardo, por favor! Vamos conversar! Eu fiz uma besteira, eu sei! Me desculpa! Eu prometo que vou te compensar!"
A mesma ladainha de sempre, primeiro a raiva, depois o pedido de desculpas, seguido da promessa de uma "recompensa".
Ela sabia exatamente como me manipular.
Mas algo dentro de mim havia mudado.
O feitiço estava quebrado.
"Eu te compro aquele console de videogame que você queria! A gente pode passar o fim de semana inteiro jogando, o que você acha?"
A voz dela agora era melosa, sedutora.
Eu senti nojo.
Nojo dela, nojo de mim por ter caído naquilo por tanto tempo.
Não respondi.
Eventualmente, ela desistiu e foi embora.
Eu sabia que no dia seguinte, eu teria que levantar, me vestir e ir trabalhar.
Teria que colocar uma máscara e fingir que tudo estava bem, porque as contas não param de chegar e a vida adulta não permite longos períodos de luto.
Mas eu também sabia que algo fundamental havia se quebrado entre nós.
E não havia console de videogame no mundo que pudesse consertar.
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