O Lado Sombrio do Cuidado
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Capítulo 1

O cheiro de café requentado e perfume barato pairava no ar do apartamento, uma mistura que definia as manhãs na república. Mas naquela manhã, algo estava diferente. Um silêncio pesado, denso, que nenhuma das minhas quatro colegas de quarto jamais seria capaz de produzir. Elas eram estudantes de moda, viviam num turbilhão de tecidos, festas e risadas altas, risadas que quase sempre eram sobre mim. Eu, Sofia, a estudante de artes, a garota "simples" com paixões "fora de moda".

Levantei da cama, meu corpo ainda pesado da noite anterior. A formatura delas. Fui obrigada a ir a um jantar de comemoração. Lembro de pratos caros, conversas sobre marcas que eu não conhecia e o olhar de desprezo de Ana, a líder do grupo, sempre que eu tentava dizer algo.

Caminhei para a sala. A cena que encontrei paralisou meus pulmões.

Ana estava caída no sofá, o rosto pálido, os lábios com uma coloração azulada estranha. Ao lado dela, Bruna, com a cabeça pendida para trás, os olhos abertos e fixos no teto. No tapete, Carla e Diana estavam deitadas em posições estranhas, como bonecas de pano jogadas. Quatro corpos. Imóveis.

Um grito ficou preso na minha garganta. Meu primeiro instinto foi correr, fugir daquele pesadelo. Mas minhas pernas não obedeciam. O pânico tomou conta de mim, um frio que subia pela espinha e gelava cada parte do meu corpo. Peguei meu celular, os dedos tremendo tanto que mal consegui discar o número da emergência.

"Polícia", a voz do outro lado da linha disse, calma e profissional.

"Minhas colegas... elas... elas não estão respirando", gaguejei, a voz um fiapo. "Nosso apartamento... Rua Augusta... por favor, rápido."

Desliguei e o silêncio voltou, mais aterrorizante do que antes. Olhei para elas de novo. Ontem à noite, elas estavam rindo. Rindo de mim. Diana tinha derramado vinho "acidentalmente" no meu vestido, o único vestido decente que eu tinha. Todas riram. Ana disse que era uma melhora.

Agora, o silêncio delas era uma acusação.

Não demorou muito para o som das sirenes cortar o ar da manhã paulistana. Logo, dois policiais uniformizados estavam na minha porta. Eles entraram com cautela, as mãos perto das armas, os rostos sérios.

"Senhorita? Foi você quem ligou?"

Apenas assenti, incapaz de formar palavras.

Um deles se aproximou dos corpos, checando os pulsos com uma expressão que não revelava nada. O outro, mais velho, veio até mim. Seu nome era Inspetor Ricardo. Ele tinha um olhar cansado, mas atento.

"Fique calma. Apenas nos diga o que aconteceu."

O que aconteceu? Eu não sabia. Lembro do jantar. Lembro de voltar para o apartamento. Lembro da cabeça doendo, da humilhação queimando no meu peito. Eu tomei um remédio para dor de cabeça e fui para o meu quarto. Apaguei.

"Nós jantamos... para comemorar a formatura delas", comecei, a voz trêmula. "Voltamos, estava tudo normal. Eu... eu fui dormir."

O olhar dele era cético. Eu entendia. Quatro garotas mortas, e uma de pé, sem um arranhão. Era impossível.

"Normal?", ele repetiu a palavra, como se ela tivesse um gosto ruim. "Elas pareciam bem?"

Pensei no jantar. Ana fazendo piadas sobre meus desenhos, chamando-os de "rabiscos de criança deprimida". Bruna concordando, rindo alto. Diana me ignorando completamente quando tentei falar com ela. E Carla... Carla estava quieta, como sempre, mas seus olhos mostravam uma cumplicidade silenciosa. Elas estavam bem. Felizes, até. Felizes em me fazer sentir pequena.

"Sim", menti. "Estava tudo normal."

Por que eu estava viva? Essa pergunta ecoava na minha cabeça, mais alta que as sirenes. Eu comi com elas? Eu bebi com elas? As memórias da noite eram fragmentadas, confusas. Eu me sentia culpada por estar de pé, por respirar o mesmo ar que agora faltava a elas. Era um sentimento doentio, uma culpa que se misturava com uma estranha sensação de alívio.

De repente, uma imagem invadiu minha mente. Um sonho. Ou talvez não fosse um sonho. Eu estava no meu quarto, no escuro, e ouvia vozes. Sussurros. E depois um grito abafado, chamando meu nome.

"Sofia... ajuda..."

Sacudi a cabeça, tentando afastar a imagem. Era só um pesadelo, o estresse da noite. Tinha que ser.

"Senhorita, a que horas você foi dormir?", o Inspetor Ricardo perguntou, sua voz me puxando de volta para a realidade aterrorizante da sala.

"Eu... eu não sei exatamente", respondi, a confusão crescendo. "Acho que era por volta da meia-noite. Eu estava com dor de cabeça."

Mas quanto mais eu tentava lembrar, mais a memória se tornava um borrão. Havia um buraco. Um espaço em branco entre tomar o comprimido e acordar com o silêncio mortal. O que aconteceu naquele intervalo? O que eu fiz? A dúvida começou a se instalar, uma semente de horror crescendo dentro de mim. Eu não tinha respostas. E a única pessoa que poderia tê-las era eu mesma.

            
            

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