O Lado Sombrio do Cuidado
img img O Lado Sombrio do Cuidado img Capítulo 3
4
Capítulo 5 img
Capítulo 6 img
Capítulo 7 img
Capítulo 8 img
Capítulo 9 img
Capítulo 10 img
img
  /  1
img

Capítulo 3

Fui levada para a delegacia. O ambiente era frio, impessoal, cheirava a desinfetante e desespero. Sentei-me numa sala de interrogatório pequena, com uma mesa de metal e duas cadeiras. O Inspetor Ricardo sentou-se à minha frente, um gravador entre nós.

"Encontramos algo, Sofia", ele disse, sem rodeios. "Um dos peritos conseguiu recuperar o áudio de um celular que estava gravando. O de Carla."

Ele apertou um botão.

O som encheu a sala. Primeiro, um ruído de algo caindo. Depois, um som de engasgo, gutural e horrível. Era aterrorizante. E então, uma voz. A voz de Carla, fraca, cheia de pânico.

"Sofia... por favor... ajuda... Sofia..."

A mesma voz do meu sonho. O mesmo pedido de socorro.

O som cortou o ar e me atingiu. Meu coração disparou. Era real. Não foi um sonho. Carla estava me chamando.

"Eu... eu não ouvi isso", gaguejei, as mãos tremendo sobre a mesa. "Eu estava dormindo. Eu juro, eu estava dormindo."

"Tem certeza?", Ricardo pressionou, seus olhos não piscavam. "Porque o horário dessa gravação é doze e quarenta e sete da manhã. Você disse que foi dormir por volta da meia-noite. É um sono pesado demais, não acha? Não ouvir engasgos, gritos, pessoas morrendo a poucos metros de você?"

A lógica dele era uma parede se fechando ao meu redor. Como eu poderia não ter ouvido? A menos que... a menos que eu não estivesse dormindo.

"Eu não sei", a minha voz era um sussurro. "Eu não me lembro."

Ricardo se recostou na cadeira, um gesto que parecia de decepção.

"Seu sonho, Sofia. Talvez não fosse um sonho. Talvez você estivesse acordada. Talvez você estivesse ouvindo tudo."

A sugestão dele era perversa, plantando uma semente de dúvida na minha própria mente. E se ele estivesse certo? E se eu ouvi e não fiz nada? Ou pior...

"Você disse que se davam bem", ele continuou, o tom agora mais inquisidor. "Mas encontramos os celulares delas. As conversas. Elas não pareciam gostar muito de você, Sofia."

Ele virou um celular para mim. Uma conversa em grupo. O nome do grupo era "As Garotas & a Esquisita". Meu estômago revirou. Eu era "a esquisita".

As mensagens eram cruéis. Piadas sobre meus desenhos, minhas roupas, meu jeito quieto. Fotos minhas, tiradas sem eu perceber, com legendas maldosas.

Ana: "Olha a cara dela. Parece que tá sempre num funeral."

Bruna: "O funeral da vida social dela, kkkk."

Diana: "Gente, ela tentou falar de arte no jantar. Quase morri de vergonha."

Eu lia as mensagens, e cada palavra era uma confirmação da dor que eu sentia todos os dias. A exclusão não era imaginação minha. Era real, documentada, celebrada por elas.

"Elas... elas eram assim", admiti, a voz embargada. A humilhação era tão fresca que queimava.

Ricardo deslizou o dedo pela tela, parando numa mensagem específica, enviada por Ana na tarde da formatura.

Ana: "Temos que resolver o problema Sofia hoje à noite. Depois da formatura, no apê. Tenho um plano."

Meu sangue gelou. Um plano? Que plano?

"Que plano era esse, Sofia?", Ricardo perguntou, a voz como aço. "Elas planejavam algo contra você? Foi por isso que você agiu primeiro?"

"Não! Eu não sabia de plano nenhum! Eu não fiz nada!", gritei, o controle finalmente se quebrando. As lágrimas que eu segurava começaram a rolar pelo meu rosto.

O inspetor não se comoveu. Ele apenas me observou, como um cientista observa uma cobaia. A gravação, as mensagens, o meu sono inexplicavelmente profundo. Tudo apontava para mim. Eu estava presa numa teia de evidências que eu não entendia, acusada de um crime que minha mente se recusava a aceitar. Mas a gravação era inegável. A voz de Carla, pedindo minha ajuda, ecoaria na minha cabeça para sempre. E a pergunta que me assombrava agora tinha uma nova dimensão de horror: eu não ouvi porque estava dormindo, ou porque eu era a razão pela qual ela precisava de ajuda?

            
            

COPYRIGHT(©) 2022