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O céu amanhecia encardido sobre os prédios de concreto. Um cinza sujo, sem esperança, como tudo na vida de Isadora Mendes.
O despertador tocou às 04h15, mas ela já estava de pé.
Não por disciplina.
Por insônia.
A camiseta larga colada de suor, os olhos fundos e o gosto amargo de um café frio que não tomaria. O colchão do sofá-cama afundava no centro, forçando a coluna a se acostumar com o desconforto. Era esse o único móvel da sala. A TV queimou há dois meses. O ventilador fazia um barulho de motor de avião. A geladeira tossia mais do que o próprio pai.
- Pai? - chamou, caminhando até o quartinho ao lado.
Raul Mendes era um homem de sessenta e três anos com um pulmão condenado e os ossos frágeis como papel molhado. Câncer. Fase avançada. Já tinham vendido carro, joias, o violão da mãe falecida, até o micro-ondas. Nada era suficiente.
Ele tossiu, ofegante, tentando sorrir ao vê-la.
- Bom dia, Isa. Como dormiu?
- A gente não dorme mais aqui. A gente sobrevive.
- Que bom que herdou o sarcasmo da sua mãe.
Ela sorriu sem humor. Deu-lhe os remédios, ajustou o lençol e preparou a mamadeira de proteína que o hospital entregava como "refeição". Enquanto ele descansava, ela verificava as notificações no celular:
> Pagamento recusado.
Conta de luz vencida.
Parcelamento negado.
Atualização: quimioterapia suspensa por inadimplência.
Sete mil reais. Era isso. Sete mil até sexta-feira ou ele não teria a próxima sessão.
Sete mil que ela não conseguiria nem vendendo o que restava do corpo.
-
Isadora trabalhava em dois turnos: meio expediente em um café barato no centro e delivery à noite. Não por escolha. A vida empurrou. E ela aprendeu a correr.
Naquela manhã, o metrô parou entre estações e ela teve que descer antes do ponto certo. Chegou ao serviço suada, descabelada, sendo recebida pelo gerente com o cinismo de sempre.
- Dez minutos de atraso de novo, Isa. Mais um e vou ter que...
- Vai me mandar embora. Já entendi.
- Eu gosto de você. Mas tem gente pedindo essa vaga.
- Então bota eles pra cuidar de um pai morrendo com dois empregos nas costas.
Silêncio. Ele desviou o olhar. Ela amarrou o avental e foi para trás do balcão. Queria gritar. Quebrar tudo. Mas nem força pra isso ela tinha.
-
Por volta das dez e meia da manhã, ele entrou.
Vittorio Bellanti.
Ela não o reconheceu de imediato. Só percebeu que não era um cliente comum. Vestia terno cinza escuro, sapatos italianos, cabelo impecável. Não parecia estar ali para café. Parecia deslocado naquele buraco.
Ele pediu um espresso. Sem açúcar. Sem olhar nos olhos dela.
Isadora preparou, entregou e seguiu o fluxo.
Mas algo nele a incomodava. O silêncio. A postura. O olhar fixo na mesa, como se lesse códigos invisíveis. Aquilo não era um executivo qualquer. Era alguém acostumado a estar no controle até do oxigênio ao redor.
- Senhor? - ela perguntou, vendo que ele não encostava no café. - Vai querer trocar?
Ele a olhou pela primeira vez.
E naquele segundo, Isadora sentiu algo estranho.
Não medo.
Mas... uma espécie de alerta no corpo. Como se algo estivesse sendo registrado ali. Como se tivesse sido escaneada.
Ele respondeu:
- Está bom assim. Você que parece amarga.
Ela franziu a testa. Mas antes que pudesse reagir, ele deixou uma nota de cem na mesa e saiu.
-
Duas horas depois, dois homens engravatados entraram no café.
- Isadora Mendes? - um deles perguntou.
Ela parou no meio da limpeza.
- Quem quer saber?
- Nosso chefe esteve aqui hoje. Ele achou... interessante. Pediu que isso fosse entregue pessoalmente.
O homem estendeu um envelope selado com lacre preto. Nenhuma marca. Nenhum nome.
Ela não pegou.
- Isso é golpe?
- Isso é destino - ele respondeu. E saiu.
Isadora segurou o envelope com a ponta dos dedos, como se fosse veneno.
Não abriu ali. Terminou o expediente. Pegou o metrô. Apoiou a cabeça contra o vidro enquanto via a cidade passar, suja, fria, indiferente. No colo, o envelope parecia pulsar.
Chegou em casa exausta, mas ainda abriu a carta.
Era um contrato. Formal, impresso, numerado.
Assinado por Vittorio A. Bellanti.
> "Proposta de união contratual.
Duração: 12 meses.
Finalidade: Herdeiro.
Benefícios: R$ 50 mil mensais, pagamento integral de despesas médicas de Raul Mendes, moradia, segurança, sigilo total."
No rodapé, uma linha única:
> "Você é fértil. Está desesperada. Eu tenho tempo, dinheiro e esperma. Vamos encurtar caminhos."
Ela jogou o papel longe, trêmula.
Quem ele achava que era?
-
No quarto ao lado, seu pai tossiu. Forte. Longo.
Ela correu até ele. Ele estava pálido. Molhado de suor. E quando segurou sua mão, olhou como se estivesse pedindo desculpas por existir.
- Desculpa, Isa... por te deixar sozinha nisso.
- Cala a boca, pai.
- Promete que não vai fazer nenhuma loucura?
Ela não respondeu.
Só segurou firme a mão dele.
Na manhã seguinte, vestiu sua melhor roupa: uma calça jeans que não desbotou tanto e uma camisa branca. E assim foi até o endereço no contrato.
Um prédio de aço e vidro que parecia um templo construído para os deuses.
Na portaria, anunciou-se:
- Isadora Mendes.