/0/15822/coverbig.jpg?v=67c118373dbc4796fb7d6a41be77771a)
O prédio da Bellanti Corp parecia um organismo vivo.
Frio. Calculado. Impenetrável.
Trinta e dois andares de aço e vidro se erguendo no centro financeiro da cidade, com câmeras em cada canto, recepcionistas que pareciam manequins e seguranças que não piscavam. A entrada era feita por leitura facial. Isadora já se sentia um erro de sistema só de estar ali.
A funcionária da recepção a escaneou de cima a baixo. Não foi discreta.
- Pode subir, senhorita Mendes. O presidente está esperando.
Elevador privativo. Um espelho grande demais. Luzes brancas que revelavam cada olheira, cada mancha na camisa branca que ela achava "boa o suficiente".
Ao chegar ao último andar, a porta se abriu em silêncio. E lá estava ele.
De costas. Sozinho.
Vittorio Bellanti.
O homem que ofereceu um contrato com preço de gente.
Vestia um terno escuro, sem gravata. Mãos nos bolsos. Olhava a cidade como se fosse dono dela - e, de certo modo, era. O escritório tinha paredes de vidro, uma estante de vinhos, quadros de arte moderna e uma única cadeira diante da mesa de mármore preto.
Ela entrou com a coluna ereta, os olhos firmes. Fingindo que não sentia a pressão sufocante do ambiente.
Ele não se virou. Falou sem emoção:
- Achei que não viria.
- E eu achei que você fosse um delírio de exaustão.
Ele sorriu de canto. Finalmente se virou.
Os olhos eram cinzentos. Não frios - congelados.
- Sente-se.
Ela não se moveu.
- Não tenho o costume de me sentar diante de um estranho que assina contratos com esperma.
O sorriso desapareceu. Ele caminhou até ela lentamente. O silêncio entre os passos era quase mais barulhento do que qualquer música. Quando parou diante dela, era como se o ar tivesse mudado de densidade.
- Quero olhar nos olhos da mulher que venderia o próprio destino por R$ 50 mil e um leito hospitalar.
Ela cerrou os punhos.
- E eu quero olhar nos olhos do homem que se acha no direito de comprar o ventre de alguém só porque tem uma conta bancária recheada e uma mãe carente de netos.
- Não. - Ele cruzou os braços. - Eu não estou comprando seu ventre. Estou comprando sua presença. Seu nome na certidão. Sua obediência mínima. E, talvez, sua genética.
- Você não precisa de uma esposa. Precisa de uma doadora.
- Uma esposa é mais discreta para os jornais.
Isadora encarou o quadro na parede. Um vulto preto sobre fundo branco. Tudo naquele lugar era uma representação do próprio Vittorio: rígido, simétrico, impessoal.
- Por que eu?
- Você é saudável. Tem histórico médico limpo. Sem irmãos. Sem dívidas pendentes no CPF. E, segundo o meu homem no café, tem um traço que me interessa: você morde a língua antes de responder. Isso significa que não é burra.
Ela riu, sarcástica.
- Que critério humano e romântico.
Ele deu de ombros.
- Isso não é amor. É função.
- E por que você precisa disso, afinal? Não é bonito o suficiente pra achar uma esposa de verdade?
Vittorio não respondeu de imediato. Girou lentamente a rolha de uma garrafa de vinho, serviu uma taça para si. Não ofereceu.
- Minha mãe tem pouco tempo. Quer ver um neto. Quer saber que o nome Bellanti não vai morrer comigo. E, por mais que você ache absurdo, não confio em mulheres dispostas demais. Gosto das que têm algo a perder.
Ela engoliu seco.
- E se eu recusar?
- Você já recusou. Mas voltou.
Silêncio.
- Eu não sou seu brinquedo.
- Eu também não. Mas estamos os dois no chão. A diferença é que eu tenho recursos para nos manter de pé.
-
Ela ficou em pé. Altiva. Mas os olhos tremiam.
- Quero ler o contrato com um advogado.
- Já enviei uma cópia. Amanhã, onze da manhã, você volta. Sozinha.
- E se eu não voltar?
- Seu pai não terá mais quimioterapia. E você será só mais um CPF esperando a dívida virar sepultura.
-
No caminho de volta, o elevador parecia mais apertado. Mais frio. O contrato ainda era um papel em branco na bolsa dela, mas já começava a escrever em sua pele.
Ela não sabia quem era aquele homem.
Nem o que ele realmente escondia.
Mas sabia de uma coisa: Vittorio Bellanti queria um herdeiro.
E ela era a escolhida para gerá-lo.
Na volta para casa, Isadora não conseguia ouvir o barulho do mundo.
O metrô lotado, os gritos de vendedores ambulantes, os empurrões dos apressados... tudo parecia em outro plano. Ela andava como se não estivesse ali, como se fosse só uma sombra tentando atravessar a cidade.
O contrato ainda queimava dentro da bolsa. Um pedaço de papel com o poder de salvar ou condenar sua vida.
Ela chegou na quitinete antes do pôr do sol. Encontrou o pai dormindo, encolhido, os lençóis suados. O cheiro de medicação barata enchia o ar. E junto dele, a culpa.
Isadora se trancou no banheiro. Olhou para o próprio reflexo. Era uma mulher que não reconhecia mais.
Cabelos desalinhados, pele seca, olheiras como hematomas.
A filha perfeita, a cuidadora incansável, a trabalhadora que nunca teve folga.
Agora era também... uma mercadoria?
Ela sentou no chão frio. Abraçou os joelhos. Não chorou.
Estava além do choro.
-
Naquela noite, ela sonhou com um corredor branco.
Um lugar silencioso, limpo, estéril. Andava descalça sobre o mármore gelado. As paredes respiravam. Ao fundo, uma porta dourada. Quando ela tocava a maçaneta, ouvia uma voz atrás de si:
- Você veio porque quis. Agora não reclame do preço.
Acordou suando.
-
Pela manhã, a ligação veio antes das sete.
- Senhorita Mendes, aqui é do escritório Bellanti. O senhor Vittorio solicitou sua presença no escritório às nove. Ele quer conversar antes que o contrato vá para os advogados.
Ela respirou fundo.
- Eu não confirmei nada ainda.
- Ele não costuma pedir. Apenas ordena. E ele pediu.
Desligaram.
-
Na recepção do prédio, ela já era tratada como alguém diferente.
A recepcionista se levantou. O segurança a acompanhou até o elevador. Havia um crachá com seu nome. O mesmo sobrenome. "Mendes", impresso em fonte dourada.
Quando a porta do escritório se abriu, ela esperava encontrar Vittorio sozinho.
Mas não estava.
Uma mulher esperava sentada na poltrona ao lado da mesa. Alta, fina, de vestido marfim. Perfume francês. O rosto lembrava o de Vittorio, mas em versão polida. Os olhos dela a examinaram com uma frieza cirúrgica.
- Isadora, esta é minha mãe, Catarina Bellanti - disse Vittorio, em pé.
Isadora hesitou. A mulher levantou-se e estendeu a mão como se estivesse tocando algo contaminado.
- Então é você.
- Isso depende da pergunta - respondeu Isa, seca.
Catarina sorriu sem humor.
- É esperta. Gosto disso. Mas vamos ser claras: você será esposa no papel, mãe de um herdeiro e nada além disso. Não me interessa sua história, sua família, suas intenções. Você será o corpo que carrega o sobrenome Bellanti para frente. Só isso.
- E se eu decidir que não sou isso?
- Vai voltar para o sofá de onde saiu - disse a mulher, com desprezo.
Vittorio interrompeu.
- Basta.
A mãe lançou um último olhar de desdém antes de sair, os saltos ecoando como tiros no mármore. Isadora ficou em silêncio.
Vittorio andou até a janela.
- Você ainda pode dizer não.
Ela cruzou os braços.
- Isso é um teste?
- Não. É a última vez que vai ter escolha.
Ele virou-se e olhou para ela como se estudasse uma obra de arte que ainda não sabia se gostava ou não. E então disse, mais baixo:
- Eu não sou o homem que você vai ver nos jornais.
- Isso já está claro.
- E você não é a mulher frágil que eu imaginei.
- Isso também.
Ele se aproximou. Perto demais.
- Então vamos parar de fingir que isso é uma coincidência.
- O que isso é, Vittorio?
- É o começo do fim de você.
Ela sentiu um frio na espinha.
Não pelo que ele disse.
Mas pela forma como disse. Sem raiva. Sem ameaça. Como um fato que já havia sido decidido muito antes dela saber.
-
Ao sair do prédio, Isadora caminhou sem rumo.
No semáforo, parou. Um carro preto estacionou na esquina. Tinha visto aquele carro no dia anterior. E no outro. O mesmo motorista, óculos escuros, imóvel.
Estava sendo seguida?
Era paranoia. Ou não.
No dia seguinte, o contrato seria entregue oficialmente.
E com ele, viria uma nova Isadora.
Uma que talvez não tivesse volta.