Hoje é o dia do vestibular, o dia mais importante da minha vida até agora. A chuva caía lá fora, forte e impiedosa, como se o céu estivesse chorando por mim. Eu desci as escadas com cuidado, o coração batendo forte no peito. Meus pais adotivos, Antônio e Sofia, e minha irmã, Lua, estavam tomando café da manhã em uma mesa farta, cheia de frutas, pães e sucos. Meu estômago roncou, mas eu sabia que nada daquilo era para mim.
Eu me aproximei de Antônio, meu pai adotivo, com a mão estendida e a voz trêmula.
"Pai, eu preciso de dinheiro para o transporte, para ir fazer a prova."
Ele nem olhou para mim. Continuou lendo seu jornal, o rosto impassível.
"Você não tem dinheiro? O que você faz com a sua mesada?"
Mesada? Eu nunca recebi um centavo deles. Todo o dinheiro que eu conseguia era de pequenos trabalhos que eu fazia escondida, como ajudar vizinhos com a lição de casa. Mas esse dinheiro já tinha acabado, usado para comprar os materiais de estudo que eles se recusaram a me dar.
"Eu não tenho mesada, pai. Eu preciso de apenas dez reais para a passagem."
Sofia, minha mãe adotiva, finalmente falou, a voz dela carregada de desprezo.
"Dez reais? Você acha que dinheiro cresce em árvore, Estrela? Você precisa aprender a se virar sozinha. Vá a pé. Vai ser bom para você, um pouco de exercício antes da prova."
Ir a pé? O local da prova ficava a mais de dez quilômetros de distância, e com aquela chuva, eu chegaria encharcada e atrasada. Era impossível.
Lua, que até então estava quieta, com um sorriso maldoso nos lábios, resolveu entrar na conversa.
"Isso mesmo, mamãe. A Estrela precisa aprender a ser independente. Além do mais, ela é tão inteligente, talvez consiga voar até lá."
A humilhação queimou meu rosto. Lágrimas começaram a se formar nos meus olhos, mas eu as segurei. Chorar na frente deles só lhes daria mais satisfação.
"Por favor, é muito importante. É o meu futuro."
Foi então que a paciência de Antônio acabou. Ele se levantou de repente, a cadeira arrastando no chão com um barulho horrível. Ele agarrou meu braço com força, suas unhas cravando na minha pele.
"Chega, Estrela! Você está nos envergonhando com essa sua mendicância. Se você não tem como ir, o problema é seu! Agora saia da minha frente, antes que eu perca a cabeça!"
Ele me empurrou com tanta força que eu caí no chão. A dor no meu quadril foi aguda, mas a dor no meu coração era mil vezes pior. Ele abriu a porta da frente e gritou.
"Fora! E não volte aqui até aprender a se comportar!"
Ele me jogou para fora, na chuva torrencial. A porta bateu com um som final, selando meu destino. Fiquei ali, caída na calçada, a água gelada me encharcando até os ossos, vendo a casa quente e iluminada onde uma família feliz tomava seu café da manhã. Minha família.
Enquanto a chuva me castigava, eu vi algo inacreditável pela janela da sala. A televisão estava ligada em um canal de notícias, e a manchete me paralisou. "Família milionária celebra as notas da filha com show particular de artista famoso". A imagem mostrava um palco montado no jardim de uma casa que eu conhecia muito bem: a minha. E no palco, um cantor famoso se apresentava para uma plateia pequena, onde Lua era o centro das atenções, sorrindo e acenando. As notas dela no simulado tinham sido medíocres, mas eles estavam celebrando como se ela tivesse ganhado um prêmio Nobel. E para mim, que lutei tanto, que estudei noites a fio, eles negaram dez reais para o transporte.
Aquela imagem foi a gota d'água. Uma risada amarga escapou dos meus lábios, se misturando com o som da chuva. Era tudo uma piada. Uma piada cruel e sem graça. Meu futuro, meus sonhos, tudo sendo lavado pela água da chuva.
Decidi ali, naquele momento, que eu não faria mais aquela prova. Não hoje. Não assim. Eu não voltaria para aquela casa. Nunca mais. Peguei o celular, que por sorte estava no meu bolso, protegido por um plástico. Meus dedos tremiam de frio e de raiva. Disquei o único número que me veio à mente, a única pessoa que já tinha me mostrado um pingo de bondade.
"Professora Carla?" Minha voz saiu falha, embargada.
"Estrela? O que aconteceu? Sua voz está horrível! Você está bem?"
Eu desabei. Contei tudo, entre soluços, a humilhação, a expulsão, o show para a Lua. Ela ouviu em silêncio, e eu podia sentir sua raiva do outro lado da linha.
"Fique onde está, Estrela. Não saia daí. Estou indo te buscar agora."
Ela me encontrou vinte minutos depois, encolhida e tremendo. Ela me envolveu em um abraço quente e me levou para o seu carro, me cobrindo com um cobertor. Pela primeira vez naquele dia, eu me senti segura.
Enquanto o carro se afastava daquela mansão, eu me lembrei de quando cheguei ali pela primeira vez. Eu tinha cinco anos, tinha acabado de sair do orfanato. Eles me escolheram, me trouxeram para essa casa enorme. Eu achava que tinha encontrado um lar. No começo, Sol, meu irmão adotivo, era meu protetor. Ele era mais velho e sempre me defendia das provocações de Lua. Mas com o tempo, ele mudou. Ele se aproximou de Lua, e os dois se uniram contra mim.
Eu passei anos tentando agradá-los. Tirei as melhores notas, ganhei competições acadêmicas, fiz todas as tarefas domésticas sem reclamar. Eu só queria um pouco de afeto, um elogio, um sinal de que eles se importavam. Uma vez, recebi uma bolsa de estudos para um intercâmbio no exterior. Era a chance da minha vida. Mas Sofia me convenceu a desistir.
"Estrela, querida, nós precisamos de você aqui. A Lua não está bem, ela precisa do seu apoio. A família vem em primeiro lugar."
E eu, tola, acreditei. Abri mão do meu sonho por uma família que nunca me quis. Eu acreditei na ilusão de que se eu me sacrificasse o suficiente, eles finalmente me amariam. Que grande erro.
A gota d'água, o momento que quebrou a última lasca de esperança, aconteceu há alguns meses. Eu ouvi uma conversa entre Lua e Sol no jardim.
"Por que você odeia tanto a Estrela?", perguntou Sol.
"Odeio? Eu não a odeio. Eu só acho engraçado. Papai e mamãe a trouxeram para ser minha substituta, caso acontecesse alguma coisa comigo. Ela é só um seguro de vida, uma peça de reposição. E ela realmente acha que eles a amam. É patético."
As palavras dela me atingiram. Eu não era uma filha. Eu era uma apólice de seguro. Uma reserva. Toda a minha vida naquela casa foi uma mentira. Toda a crueldade deles, as "provas de caráter", eram apenas uma forma de me manter no meu lugar, de me lembrar que eu era inferior, substituível.
Naquele momento, na calçada, debaixo da chuva, eu entendi. Eles nunca me amariam. E eu não precisava mais do amor deles. Eu precisava me libertar.