Primeiro, fui até a cozinha. Em uma gaveta escondida, eu guardava um caderno. Não era um diário. Era um manual de sobrevivência. Nele, eu tinha anotado meticulosamente todas as preferências da família. O tipo de café que Antônio gostava pela manhã, a temperatura exata. As flores que Sofia preferia no vaso da sala e como ela gostava que fossem arrumadas. As dezenas de alergias, manias e comidas favoritas de Lua, que mudavam a cada semana. As marcas de roupas que Sol usava. Eu tinha memorizado tudo, na esperança de que minha utilidade me rendesse um pouco de afeto.
Peguei o caderno, levei-o para a lareira da sala e acendi um fósforo. Observei as páginas se curvarem e escurecerem, as palavras de servidão se transformando em cinzas. Um cheiro de papel queimado encheu o ar. Era o cheiro da minha liberdade. Eu não era mais o manual de instruções da felicidade deles.
Depois, fui para o escritório de Antônio. Liguei o computador. Eu era a responsável por organizar a vida digital da família. Agendas, contatos, lembretes de aniversários de sócios importantes, playlists para jantares de negócios. Com alguns cliques, deletei tudo. Formatei os backups. Esvaziei a lixeira. O calendário que regia a vida social e profissional deles agora era uma tela em branco. Eles teriam que aprender a se lembrar das próprias coisas.
Meu próximo ato de destruição foi mais pessoal. Ao longo dos anos, na minha ingenuidade, eu tinha feito presentes para eles. Um cachecol de tricô para Sofia, que ela nunca usou. Um porta-retrato de madeira que eu mesma lixei e envernizei para Antônio, que ficou guardado no fundo de uma gaveta. Uma caixa de música pintada à mão para Lua, que ela chamou de "cafona". Encontrei cada um desses objetos, símbolos da minha esperança tola, e os quebrei em pedaços. Joguei os destroços no lixo. Meus esforços, meu tempo, meu carinho, reduzidos ao que eles sempre foram para eles: lixo.
O passo mais importante veio a seguir. Eu tinha provas. Durante meses, depois de ouvir a conversa entre Lua e Sol, eu comecei a coletar evidências. Gravei conversas escondidas, salvei mensagens de texto em que Lua se gabava para amigas sobre como me manipulava, e até consegui um extrato bancário que mostrava uma grande transferência de dinheiro de Sol para Lua, com uma anotação suspeita. Reuni tudo em um arquivo digital e enviei para o e-mail da Professora Carla com uma única instrução: "Use isso se for necessário". Eu não queria vingança, queria proteção. Queria um seguro de vida, mas desta vez, um que funcionasse a meu favor.
Finalmente, fui para o meu quarto, o "quarto de hóspedes" que me foi designado. Abri o pequeno armário. Minhas posses eram poucas. Algumas peças de roupa velhas e gastas, a maioria herdada ou comprada em brechós com o pouco dinheiro que eu juntava. Alguns livros. Era tudo o que eu tinha para mostrar por mais de uma década vivendo naquela mansão. Coloquei tudo em uma única mala velha. A mala fechou facilmente, com espaço de sobra. A escassez dos meus pertences era um testemunho silencioso da negligência deles.
Olhei ao redor do quarto agora completamente vazio. Não havia fotos, nem decorações, nem nada que indicasse que alguém morava ali. Era um cômodo anônimo, impessoal. E eu percebi que, na verdade, eu nunca tinha ocupado um espaço real naquela casa. Eu era apenas uma presença temporária, uma sombra que eles mal notavam. Deixar aquele quarto vazio não mudava nada, porque para eles, ele sempre esteve vazio.
Peguei minha mala, desci as escadas pela última vez e caminhei até a porta da frente. Não olhei para trás. A mansão podia ser grande e luxuosa, mas para mim, era apenas uma concha vazia. E eu estava finalmente saindo dela. A liberdade tinha um gosto de ar fresco e um futuro desconhecido.