"Isso não é só sobre dinheiro, João" , o médico o repreendeu, a voz baixa e urgente. "O que fizemos foi ilegal. Foi monstruoso. Usamos sua esposa e seu filho como se fossem... peças de reposição."
A menção de Maria e Pedro fez o Dr. Ricardo estremecer. Ele se lembrava dos rostos inocentes na mesa de operação, enganados pela mentira de um acidente de carro que nunca aconteceu de verdade.
"Eles estão bem, não estão?" , João disse com desdém, finalmente levantando o olhar. Seus olhos eram frios, vazios de qualquer remorso. "Maria teve apenas um rim removido, e Pedro... bom, ele é jovem, vai se recuperar. E agora Clara, minha filha, tem uma chance de viver uma vida normal. Isso é o que importa."
"Você está louco?" , o Dr. Ricardo sibilou, sua calma profissional se quebrando. "Você acha que Maria nunca vai descobrir? Você acha que pode esconder para sempre que orquestrou a ruína da sua própria família para salvar a filha da sua amante?"
João riu, um som seco e arrogante que ecoou na sala estéril.
"Maria? Ela me ama. Ela acredita em qualquer coisa que eu digo. Ela vai pensar que foi um milagre que todos sobrevivemos ao 'acidente' . Ela vai até ficar grata por eu estar cuidando dela agora."
Ele dobrou o relatório e o guardou no bolso do paletó caro.
"Relaxe, Ricardo. Nosso segredo está seguro. Ninguém nunca saberá a verdade."
Ele se sentia invencível, um mestre manipulador que controlava o destino de todos ao seu redor. Ele estava cego pela própria arrogância, convencido de que o amor de Maria por ele era uma ferramenta que ele poderia usar para sempre.
Do outro lado da porta entreaberta, Maria ouviu cada palavra.
Ela estava parada ali, o corpo ainda dolorido da cirurgia, a mão pressionando o lado onde uma dor fantasma latejava. O mundo dela, que já estava de cabeça para baixo desde o suposto acidente, desmoronou completamente.
A conversa que ela ouviu não fazia sentido, era como um pesadelo. João... seu marido... o pai de seus filhos... tinha feito isso? Com ela? Com Pedro?
A dor em seu corpo não era nada comparada à dor que rasgava sua alma. As lágrimas que ela vinha segurando, lágrimas de alívio por terem sobrevivido, agora se transformaram em lágrimas de horror e traição. Ela se culpou por ser tão cega, tão ingênua. Como ela pôde não ver o monstro que dormia ao seu lado todas as noites?
O amor que ela sentia por ele se desfez em um instante, substituído por um ódio gelado e profundo.
Ao seu lado, segurando sua mão, estava Pedro, seu filho de sete anos. Seus olhos grandes e inocentes estavam arregalados de terror. Ele também tinha ouvido. Ele não entendeu todas as palavras, mas entendeu o suficiente. Ele entendeu que seu pai, seu herói, os machucou.
O menino não chorou. Ele não gritou. Ele apenas ficou ali, tremendo, o rosto pálido como um fantasma. O som da voz de seu pai, antes uma fonte de conforto, agora era a fonte de seu maior medo.
Dentro da sala, João, alheio à devastação que causara, pegou o telefone.
"Sofia, meu amor" , ele disse, a voz agora cheia de um carinho falso. "Tenho ótimas notícias. Clara está salva. Logo, vocês duas poderão voltar para casa. Para a nossa casa."
A alegria em sua voz era como um veneno para Maria.
Ela recuou silenciosamente, puxando Pedro com ela. Ela precisava sair dali antes que ele a visse. Antes que ele visse a verdade em seus olhos.
Quando João saiu da sala, cantarolando baixinho, ele deu de cara com Maria e Pedro no corredor. A cor sumiu de seu rosto por um segundo.
"Maria! O que você está fazendo fora da cama? E Pedro, você também deveria estar descansando."
A atmosfera ficou tensa. O ar ficou pesado. Maria forçou um sorriso, um ato de vontade que exigiu toda a sua força. O confronto teria que esperar. A vingança precisava ser planejada.