Fui até o pequeno closet do quarto de hóspedes. Minhas coisas já estavam quase todas em uma única mala grande, um plano que eu vinha montando há meses. As roupas, os poucos objetos pessoais que eu valorizava, meus documentos. Peguei meu laptop de design gráfico da escrivaninha. Era a única coisa de valor que eu realmente possuía.
Trabalhei em silêncio, cada movimento calculado para não fazer barulho. Meu corpo ainda estava fraco, mas a adrenalina e a determinação me mantinham em pé.
Quando a mala estava pronta, eu a arrastei silenciosamente pelo corredor. Ao passar pela porta do quarto principal, ouvi o som da respiração profunda de Sofia. Por um momento, hesitei. Três anos. Uma vida inteira resumida em uma mala e um hematoma no braço. Mas a imagem dela massageando a mão de Gabriel enquanto eu sentia dor varreu qualquer dúvida.
Desci as escadas. Na sala de estar, a bagunça da noite anterior ainda estava lá: taças vazias, controles de videogame no chão, a bandeja de doces pela metade. Parecia uma cena de outra vida.
Abri a porta da frente com o máximo de cuidado e saí para o corredor do andar. O ar fresco da manhã era como um bálsamo. Eu estava quase livre.
"Heitor? Vai viajar?"
A voz me assustou. Era Rafaela, minha vizinha do apartamento ao lado. Uma senhora gentil na casa dos sessenta anos, que sempre me cumprimentava com um sorriso caloroso, apesar de Sofia a ignorar completamente. Ela estava saindo para passear com seu pequeno terrier.
"Ah, bom dia, Rafaela", eu disse, forçando um sorriso. "Sim, vou visitar meus pais por um tempo."
Ela olhou para a minha mala, depois para o meu rosto. Sua expressão se tornou preocupada.
"Você está bem, meu filho? Você parece tão pálido."
Antes que eu pudesse responder, a porta do meu apartamento se abriu com um estrondo.
Sofia estava lá, de pé, vestindo apenas uma camisola de seda. Seu cabelo estava uma bagunça, e seus olhos estavam semicerrados de sono e raiva.
"Onde você pensa que vai com essa mala?", ela perguntou, a voz grave.
Seu olhar passou de mim para Rafaela, e uma máscara de irritação tomou conta de seu rosto.
"O que você está olhando?", ela rosnou para a vizinha.
Rafaela, assustada, recuou um passo. "Eu... eu só estava dando bom dia."
"Pois então, cuide da sua vida", disse Sofia, antes de voltar sua atenção total para mim. Ela agarrou meu braço - o machucado - e me puxou de volta para dentro do apartamento com uma força surpreendente.
"Ai!", eu exclamei, a dor me fazendo ver estrelas.
Ela me arrastou pela sala e bateu a porta, trancando-a.
"O que diabos você está fazendo, Heitor? Tentando fugir como um ladrão no meio da noite?"
"Eu não estou fugindo, Sofia. Eu estou indo embora", eu disse, tentando manter a calma.
Ela riu, um som sem humor. "Indo embora? Você não vai a lugar nenhum. Você é meu marido. Seu lugar é aqui."
A possessividade em sua voz era assustadora. Não era amor, não era preocupação. Era o sentimento de um dono que vê sua propriedade tentando escapar.
"Nosso casamento acabou, Sofia."
"Acabou?", ela repetiu, incrédula. "Ele acaba quando eu digo que acabou. Você tem alguma ideia do que as pessoas vão dizer? Minha família? Você vai me humilhar?"
A ironia era tão espessa que eu quase engasguei.
"Humilhar você?", eu disse, a voz cheia de um cansaço infinito. "É só com isso que você se importa?"
"Claro que é! Nossa imagem é tudo!"
Ela me circulou, os olhos me analisando. Ela parecia estar vendo algo diferente, algo que a deixou desconfortável. A submissão habitual não estava mais lá.
"O que aconteceu com você?", ela perguntou, a voz um pouco mais baixa, quase curiosa. "Desde ontem à noite, você está... diferente. É por causa daquela febre estúpida?"
Ela se aproximou, tentando tocar meu rosto.
"Você era tão dócil. O que mudou?"
Eu não respondi. Apenas a encarei, deixando meu silêncio dizer tudo o que as palavras não podiam. O Heitor que ela conhecia, o capacho que ela pisava, tinha morrido na noite anterior, em algum lugar entre a chuva gelada e a ponta daquela agulha. E ela estava apenas começando a perceber.