João Carlos contou tudo, a voz monótona, esvaziada de emoção. Contou sobre o brinco, a cena na sala, a orquídea roubada, a humilhação. Falar em voz alta tornava tudo mais real, mais doloroso.
"A 'Beijo de Cobra' ... Ela sabia o quanto aquela flor significava pra mim, Lucas. Ela a usou para me ferir."
"Ela é uma cobra, isso sim," Lucas disse, com uma raiva que João sentia em nome do amigo. "O que você vai fazer?"
"Eu não sei. Eu não consigo nem pensar direito."
E era verdade. João Carlos tentou trabalhar, mas suas mãos tremiam. Ele olhava para as ferramentas, para a terra, mas sua mente estava em outro lugar, revivendo a cena da traição repetidamente. O cheiro das flores lhe dava náuseas. A beleza da natureza parecia uma zombaria. Ele pediu ao seu chefe para sair mais cedo, a desculpa de uma dor de cabeça soando fraca até para si mesmo.
Ele precisava ir para casa. A casa que agora parecia um campo de batalha. Ele precisava confrontá-la, longe dos olhares curiosos, precisava de respostas, mesmo que soubesse que elas o destruiriam ainda mais.
Ele a encontrou na sala, fazendo as malas. Não havia remorso em seu rosto, apenas uma frieza calculista. Ela se movia com uma eficiência cruel, jogando roupas e sapatos caros dentro de uma mala de grife.
"Você voltou," ela disse, sem olhá-lo nos olhos.
"Eu moro aqui, Ana Lúcia. Ou você se esqueceu?"
Ela finalmente parou e o encarou. Havia um brilho de desafio em seu olhar.
"Não por muito tempo, pelo visto."
"Eu quero uma explicação," ele disse, a voz baixa, mas firme. "Eu mereço isso."
Ela riu, um som seco e sem alegria.
"Explicação? João Carlos, olhe para você. Olhe para suas mãos sujas de terra. Olhe para essa casa simples. Você acha que isso é o suficiente para mim? Eu quero mais. Eu mereço mais."
Cada palavra era um golpe. Ele sentiu uma raiva surda crescer dentro dele, uma raiva que vinha de anos de sacrifício, de noites mal dormidas pensando em como dar a ela o melhor, de ter colocado os sonhos dela sempre à frente dos seus.
"Eu te dei tudo que eu podia! Eu trabalhei como um burro de carga para te dar conforto, para pagar suas faculdades que você nunca terminava, seus cursos, seus caprichos! Eu te dei meu amor, minha lealdade! O que mais você queria?"
A voz dele subiu, a dor e a frustração de uma década explodindo de uma só vez. Ele gesticulava, o corpo tremendo de raiva.
"Você queria mais?" Ana Lúcia gritou de volta, o rosto contorcido numa máscara de desprezo. "O Rodrigo me dá paixão! Ele me dá emoção! Ele não cheira a terra molhada o dia todo! Ele me leva a lugares caros, me apresenta a pessoas importantes! O que você me deu? Um teto e contas para pagar!"
A acusação era tão absurda, tão injusta, que João Carlos ficou sem palavras por um momento. Ela o culpava por sua própria infidelidade, por sua ganância.
"Então é isso. Dinheiro e status," ele disse, a voz agora perigosamente calma. "Tudo se resume a isso."
"Sim! É isso! E já que você não pode me dar o que eu quero, eu vou embora. Mas eu quero metade de tudo. Da casa, do carro, do dinheiro que você tem no banco. É meu por direito."
Ele a encarou, a decisão se formando em sua mente, dura e fria como aço.
"Você não vai levar nada. Eu vou te dar uma escolha, Ana Lúcia. Ou você sai desta casa agora, apenas com as suas roupas, e a gente se divorcia sem escândalo, ou eu vou à polícia e presto queixa do roubo da orquídea. E eu tenho a prova."
Ele abriu a mão. O brinco de pérola brilhava na palma da sua mão.
O rosto dela empalideceu. Por um instante, ele viu o medo em seus olhos. Mas foi apenas por um instante. A raiva voltou, mais forte e mais feia.
"Você não ousaria!" ela sibilou. "Você arruinaria minha vida!"
"Você já arruinou a minha," ele respondeu, a voz sem emoção.
A reação dela foi instantânea e violenta. Ela voou para cima dele, unhas em riste, gritando obscenidades.
"Eu te odeio! Eu te odeio! Você é um fracassado! Um jardineiro de merda!"
Ele a segurou pelos pulsos, a força dela o surpreendendo. Era o desespero de um animal encurralado. Ele a empurrou para longe, e ela tropeçou, caindo sobre uma das malas.
Nesse exato momento, a campainha tocou.
Ana Lúcia se levantou, ajeitou o cabelo e, com uma rapidez assustadora, seu rosto se transformou. O ódio deu lugar a um sorriso malicioso.
"É o Rodrigo. Ele veio me buscar."
Ela caminhou até a porta e a abriu. Rodrigo estava lá, encostado no batente, com um sorriso arrogante no rosto. Ele olhou para João Carlos por cima do ombro de Ana Lúcia, um olhar de puro triunfo.
Ver os dois juntos, ali, na porta da sua casa, foi a imagem final da sua derrota. Ele sentiu algo dentro dele se quebrar de vez. Não era mais dor, nem raiva. Era um vazio gelado, uma dormência que tomava conta de todo o seu ser. Ele assistiu, como se fosse um espectador de sua própria tragédia, enquanto Ana Lúcia pegava suas malas e saía, de braços dados com o amante, sem olhar para trás.
A porta se fechou com um clique suave, e o silêncio que se seguiu foi o som mais alto que João Carlos já tinha ouvido. Ele estava sozinho. Completamente e irremediavelmente sozinho.
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