Capítulo 1

Dois dias antes de Pedro passar no concurso, minha memória voltou.

Naquele momento, eu estava limpando o chão da casa, esfregando com força a madeira gasta com um pano áspero. O cheiro de produto de limpeza enchia minhas narinas, e minhas mãos, já cheias de calos de dois empregos, ardiam um pouco. Mas meu coração estava leve.

Eu me lembrava de tudo. Eu era Sofia Mendes, a neta de um dos juristas mais respeitados do Brasil, o Dr. Mendes. O acidente na montanha, o incêndio, a amnésia... tudo voltou com uma clareza assustadora.

Meu primeiro pensamento não foi sobre minha fortuna ou meu status. Foi sobre Pedro. Meu namorado não precisaria mais passar por dificuldades. Eu poderia dar a ele tudo o que ele sempre sonhou.

Escrevi uma carta e pedi a um entregador para enviá-la com urgência para a capital. Na carta, eu contava tudo ao meu avô e pedia para que ele preparasse minha volta. Planejei esperar o resultado do concurso para fazer uma surpresa a Pedro. Imaginei seu rosto chocado e depois feliz.

Mas a surpresa foi minha. E não foi nada feliz.

No dia em que o nome de Pedro saiu na lista de aprovados para procurador, a casa simples que dividíamos se encheu de vizinhos e amigos. Ele era o orgulho da vila. Eu me mantive nos fundos, sorrindo, feliz por ele. Servi comida e bebida a todos, com o coração transbordando de alegria por seu sucesso.

Quando a festa acabou e a última pessoa foi embora, ele me chamou para o canto do quintal. Ao seu lado estava Júlia, a filha do governador, uma influenciadora digital que eu só via em revistas. Ela era linda, vestida com roupas caras que valiam mais do que tudo que tínhamos em casa.

"Sofia, preciso terminar tudo com você", ele disse, sem rodeios. A voz dele era fria, sem a ternura que eu conhecia.

Eu senti o chão sumir sob meus pés. Minhas mãos, as mesmas que trabalharam até sangrar para pagar seus livros e cursinhos, de repente pareciam pesadas e inúteis.

"Três anos", eu consegui dizer, com a voz embargada. "Três anos juntos, Pedro. Precisa ser tão cruel assim?"

Ele me lançou um olhar que eu nunca tinha visto antes. Era um olhar de desprezo, de nojo.

"Uma órfã humilde como você não me serve mais. Olhe para você. Olhe para as suas mãos. Júlia é sofisticada, culta, e mil vezes melhor que você."

Ele não esperou minha resposta. Abraçou a cintura de Júlia, deu um beijo em sua bochecha e se virou para ir embora. Antes de sair, ele olhou para seu novo assistente, um homem que ele contratou naquela mesma semana.

"Leve-a para o quartinho dos fundos. Tranque a porta. Não quero que ela cause problemas."

O assistente me agarrou pelo braço. Eu não lutei. O choque era grande demais.

Mas o que Pedro não sabia é que eu não era uma heroína sofredora de romance. Minha verdadeira identidade era a de Sofia Mendes. Se fosse para falar de status, eu estava muito acima dele.

Enquanto era arrastada, a imagem dos últimos três anos passou pela minha cabeça. Três anos atrás, eu e minha amiga de infância, Lúcia, que trabalhava como minha assistente, fomos passear na montanha. Um incêndio começou de repente. Lúcia morreu tentando me salvar, e eu desmaiei com a fumaça e o pavor.

Quando acordei, estava na casa de Pedro. A mãe dele, Dona Clara, disse que me encontrou na beira da estrada e me salvou. Eu tinha batido a cabeça e perdido a memória. Não sabia meu nome, de onde vinha, nada.

Por gratidão, e porque Pedro era charmoso e parecia cuidar de mim, eu acabei aceitando seu pedido de namoro. No ano seguinte, Dona Clara faleceu de uma doença repentina. A família de Pedro era muito pobre. Para que ele pudesse se dedicar totalmente aos estudos para o concurso, eu assumi tudo.

Eu trabalhava de dia em uma lavanderia e de noite como garçonete. Inúmeras noites, meus olhos ardiam de cansaço enquanto eu remendava as roupas velhas dele com minhas mãos, que nunca tinham feito um trabalho assim.

O inverno passado foi terrivelmente frio. Para ganhar um dinheiro extra, eu lavava roupas para fora em um tanque de cimento com água gelada, como Dona Clara costumava fazer. Minhas mãos ficaram cheias de frieiras, doloridas e rachadas.

Uma vez, com medo de que ele não estivesse se alimentando bem, fui pescar no rio. A correnteza estava forte e quase me levou. Voltei para casa ensopada, tremendo de frio, mas com três peixes na mão.

Ele me abraçou, comovido e assustado.

"Sofia, eu nunca vou te abandonar! Nunca!"

Ele disse que "Sofia" significava "sabedoria", mas para ele, significava "aquela que dá, que oferece". Ele disse que eu era o presente mais precioso que o céu lhe deu.

Meu coração se derreteu. Naquela noite, eu me entreguei a ele, acreditando em cada palavra.

Eu o amava. E achava que ele me amava também.

No momento em que minha memória voltou, há dois dias, meu primeiro pensamento foi: "Meu namorado não vai mais precisar sofrer".

Quem diria que, assim que ele realizasse seu sonho, me descartaria como um objeto velho.

O assistente me jogou no quartinho escuro e úmido dos fundos e trancou a porta. Fiquei ali, no escuro, ouvindo os passos deles se afastando. O ódio começou a crescer dentro de mim, um sentimento frio e duro que eu não conhecia.

Como eu poderia recuperar a sinceridade que entreguei a ele? Como poderia recuperar a vida da minha amiga Lúcia?

Horas depois, ou talvez no dia seguinte, a porta se abriu. Era Pedro. Ele entrou com uma tigela de comida na mão. Seu rosto não era mais cruel, mas sim falsamente preocupado.

"Querida, como você pode me entender mal?", ele disse, se aproximando e segurando minhas mãos. "Eu só estava pensando no nosso futuro."

Ele falava com tanta convicção que por um segundo, uma parte de mim quis acreditar.

"A filha do governador me pediu em casamento. Fui forçado a aceitar. Pelo meu futuro, você terá que se sacrificar um pouco. Quando a hora for certa, eu te trarei de volta como minha amante."

Ele tentava fazer parecer que estava sendo obrigado, mas eu vi um brilho de satisfação em seus olhos.

"Terminar e depois me ter como amante? Você precisa ser tão cruel comigo?", eu repeti a pergunta, com o coração apertado de nojo e raiva.

Ele suspirou, como se estivesse sofrendo muito.

"Já que você não concorda, prefiro desistir da minha carreira a recusar este casamento."

Ele parecia tão sincero. Eu quase, quase revelei minha verdadeira identidade. Estava prestes a abrir a boca quando o assistente dele gritou da porta.

"Senhor, a Srta. Júlia, filha do governador, está aqui."

Pedro soltou minhas mãos como se elas queimassem.

"Traga um pouco de chá, rápido!", ele ordenou para mim.

E saiu correndo pela porta, me deixando ali, com as mãos vazias e o coração afundando.

No quintal, Júlia estava parada, uma figura de elegância que não combinava em nada com a pobreza da casa. Pedro se inclinou para ela e disse algo que a fez rir, cobrindo a boca com a mão.

A amargura que eu havia conseguido reprimir voltou com força total. Peguei uma xícara e um pouco do chá simples que tínhamos. Respirei fundo e caminhei até eles.

"Só temos chá simples em casa, peço desculpas, Srta. Júlia."

            
            

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