A morte tinha o gosto de fumaça e o cheiro de carne queimada.
A última coisa que vi foi o sorriso satisfeito de Ana, minha filha adotiva, do outro lado da porta trancada do porão, enquanto minhas chamas consumiam tudo.
Fui eu quem começou o incêndio, meu ato final de vingança.
Levar todos comigo: Ana, seus pais biológicos gananciosos, e eu, na casa que um dia foi um lar. Morrendo juntos.
Mas então, eu renasci.
Acordei no dia em que a nevasca apocalíptica começou, o mesmo dia em que tudo deu errado na minha vida anterior.
A memória da minha vida passada é uma ferida aberta, cada detalhe terrível.
Lembro-me de Ana entrando no meu quarto, com os olhos cheios de uma falsa preocupação, implorando para trazer seus pais biológicos, os Silva, para nossa casa.
Eu, a tola Maria, acreditei.
Essa foi a pior decisão da minha vida.
Eles chegaram, e a princípio, parecia uma grande família feliz.
Mas, quando a comida que eu havia estocado começou a diminuir, a verdadeira natureza dos Silva apareceu.
Eles comiam como se não houvesse amanhã, escondiam comida e reclamavam de tudo.
João, meu gentil marido, tentava apaziguar a situação, mas não via a maldade neles.
Quando a última lata de sopa acabou, o inferno começou.
O Sr. Silva, com olhos injetados, agarrou-me pelos cabelos, chamando-me de "mulher inútil".
Minha pequena Sofia, de cinco anos, chorava.
A Sra. Silva a agarrou.
"Cale a boca, sua pirralha! Você comeu mais do que todos nós!"
E então, o impensável aconteceu.
Ela jogou minha filha pela janela, na neve profunda.
Um grito rasgou minha garganta.
João correu para a janela, mas o Sr. Silva o segurou.
"Seu marido vai sair e encontrar comida para nós. Se ele não voltar em duas horas, sua vez será a próxima."
Eles o forçaram a sair na tempestade, sem esperança.
Ele nunca mais voltou.
Fiquei sozinha, catatônica de dor, presa com aqueles monstros e com Ana, que assistiu a tudo sem dizer uma palavra.
Foi Ana quem me arrastou para o porão.
"Você não serve para mais nada, mãe", disse ela, com a voz fria.
Ela trancou a porta.
Converti minha dor em ódio, ateando fogo em tudo, com a imagem de Sofia caindo na neve e o silêncio da ausência de João em minha mente.
Agora, ela está parada na minha frente, em carne e osso, com a mesma falsa preocupação, pedindo para eu trazer seus pais.
"Mãe, você já viu a previsão do tempo? A temperatura vai cair muito. Estou tão preocupada com meus pais..."
Um calafrio percorre minha espinha, não de frio, mas de raiva.
Eu olho para ela, não vejo minha filha, mas a traidora egoísta.
Um sorriso frio se forma em meus lábios.
Desta vez, a tragédia não vai se repetir.
"Ana", eu digo, minha voz mais dura.
"Nós precisamos conversar."