Amor e Ódio na Tempestade
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Capítulo 2

Eu acordo novamente, mas desta vez estou no meu quarto, na minha cama macia. O sol da manhã entra pela janela, mas não traz calor. O ar está gelado. É real. Eu realmente voltei.

A memória do fogo, do cheiro de carne queimada, do sorriso de Ana, me atinge com a força de um soco. Eu me sento na cama, o coração martelando contra minhas costelas. Olho para minhas mãos. Elas não estão queimadas. Estão lisas. Eu estou viva. Sofia e João estão vivos.

Um soluço escapa dos meus lábios, uma mistura de alívio e dor profunda. Eu tenho uma segunda chance. Não vou desperdiçá-la.

Levanto-me e vou até o quarto de Sofia. Ela está dormindo, seu peito pequeno subindo e descendo pacificamente. Seu rosto de anjo é a coisa mais preciosa do mundo. Eu a beijo na testa, inalando seu cheiro de criança. Eu juro para mim mesma, em silêncio, que nada nem ninguém vai machucá-la nesta vida.

Na cozinha, encontro Dona Clara, nossa governanta. Ela está aqui há anos, uma mulher leal e observadora. Na vida passada, ela foi a primeira a desconfiar dos Silva.

"Bom dia, Dona Maria. O tempo virou, não é? Parece que vamos ter uma nevasca daquelas."

"Sim, Clara. Uma daquelas."

Ana desce as escadas, já vestida. Ela me dá um beijo no rosto, um gesto que agora me causa repulsa.

"Mãe, eu estava pensando. Já que vou visitar meus pais e levar algumas coisas para eles, eu queria aproveitar e pedir uma coisinha."

Eu a encaro, esperando.

"Eu vi aquele colar de diamantes que o papai te deu. Você quase não usa. Eu poderia levá-lo? Meus pais estão passando por dificuldades, e se as coisas ficarem muito ruins, poderíamos vendê-lo. Seria uma segurança para eles."

A audácia. A ganância descarada. Na vida passada, eu teria ficado chocada, mas teria acabado cedendo, movida pela culpa e pelo desejo de agradá-la.

Hoje, eu reprimo a vontade de rir na cara dela. Diamantes. Ela quer diamantes para a família que me deixou morrer de fome.

Eu penso na origem de Ana. Nós a adotamos de um orfanato quando ela tinha três anos. Seus pais biológicos, os Silva, a abandonaram porque não podiam sustentá-la. Anos depois, quando Ana era adolescente, eles reapareceram, cheios de desculpas e lágrimas de crocodilo. Nós, querendo que Ana conhecesse suas raízes, permitimos o contato. Grande erro. Eles a encheram de histórias sobre como a vida era difícil, como sentiam sua falta, e lentamente a viraram contra nós.

"Claro, querida", eu digo, com um sorriso que não chega aos meus olhos. "É uma ótima ideia. A família vem em primeiro lugar."

Ana sorri, vitoriosa. "Eu sabia que você entenderia, mãe! Você é a melhor!"

Ela me abraça, e eu tenho que usar toda a minha força de vontade para não empurrá-la para longe.

"Mas o colar está no cofre do banco", continuo, minha mente trabalhando rápido. "E com essa neve toda, não sei se consigo ir até lá. Mas tenho outras joias aqui em casa. Deixe-me ver o que posso encontrar para você."

"Qualquer coisa serve, mãe! Eles ficarão tão gratos!"

Patética.

Mais tarde, chamo Dona Clara ao meu escritório.

"Clara, preciso da sua ajuda para uma coisa. É muito importante e preciso que você confie em mim."

Pego uma caixa de veludo vazia, uma réplica barata que comprei em uma viagem. Também pego algumas bijuterias sem valor que guardo em uma gaveta.

"Vamos encher estas caixas", eu digo, "com as peças mais brilhantes e falsas que encontrarmos."

Dona Clara me olha, confusa. "Dona Maria, por que estamos fazendo isso? A menina Ana não vai ficar brava quando descobrir que é falso?"

Seu tom preocupado me lembra de sua lealdade. Na vida passada, ela tentou me avisar. "Dona Maria, essa gente não me cheira bem", ela dizia sobre os Silva. Eu não a ouvi.

Um flash da minha morte me atinge. O porão escuro. A fome. O desespero. O rosto de Sofia. O corpo de João congelado na neve.

Eu olho para Clara, e ela deve ter visto a dor nos meus olhos, porque sua expressão muda de confusão para preocupação.

"Clara, Ana não vai descobrir. Pelo menos não até estar bem longe daqui."

Explico a ela meu plano. Não a parte da reencarnação, claro. Ninguém acreditaria. Mas explico que Ana planeja levar os itens para seus pais, e que eu não confio neles. Digo que é uma forma de testá-la.

"Aquela família só trouxe problemas desde que apareceu", Clara resmunga, confirmando meus pensamentos. "Eles encheram a cabeça da menina de bobagens. Ela não era assim."

"Eu sei, Clara. Eu sei disso melhor do que ninguém agora."

Minha voz é firme. A Maria ingênua morreu no incêndio. A mulher que está aqui agora é uma sobrevivente. E uma mãe disposta a tudo para proteger sua cria.

"Ajude-me, Clara. E depois disso, quero que você vá para casa. Dê folga a todos os funcionários por uma semana. Pague o dobro. Diga que a casa vai entrar em uma pequena reforma de emergência por causa do frio. Ninguém deve estar aqui quando a nevasca começar de verdade."

Clara me olha, seus olhos se arregalando com a urgência no meu tom. Ela não entende tudo, mas entende o essencial. Ela assente.

"Sim, Dona Maria. O que a senhora precisar."

Juntas, nós preparamos as caixas de "joias". Cada peça falsa que colocamos ali é um prego no caixão da minha antiga vida. É o começo da minha vingança.

            
            

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