Amor e Ódio na Tempestade
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Capítulo 1

A morte tinha o gosto de fumaça e o cheiro de carne queimada.

No final, antes que as chamas consumissem tudo, a última coisa que vi foi o rosto de Ana, minha filha adotiva, contorcido por um sorriso satisfeito do outro lado da porta trancada do porão.

Fui eu que comecei o incêndio.

Foi meu último ato de vingança, um abraço de fogo para levar todos comigo. Ana, seus pais biológicos gananciosos, e eu.

Todos nós morrendo juntos na casa que um dia foi um lar.

Agora, estou sentada na beira da cama, e o ar frio da manhã me corta a pele. Olho para o calendário na parede. É o dia em que a temperatura despencou, o dia em que a nevasca apocalíptica começou. O dia em que tudo começou a dar errado.

Eu renasci.

A memória da minha vida passada é uma ferida aberta na minha alma. Lembro-me de cada detalhe com uma clareza terrível.

Lembro-me de Ana entrando no meu quarto, com os olhos cheios de uma falsa preocupação.

"Mãe, estou tão preocupada com meus pais. Eles moram no interior, a casa deles não tem aquecimento. Com essa onda de frio chegando, eles não vão sobreviver."

Sua voz era doce, cheia de uma piedade filial que agora sei que era pura atuação.

E eu, a tola e ingênua Maria, acreditei. Meu coração de mãe se encheu de compaixão por aquela menina que criei como se fosse minha, e por extensão, por seus pais biológicos, os Silva.

"Não se preocupe, querida", eu disse, abraçando-a. "É muito perigoso pegar a estrada com o tempo assim. Por que não trazemos seus pais para ficarem aqui conosco até a nevasca passar?"

Foi a pior decisão da minha vida.

Os Silva chegaram no dia seguinte, poucas horas antes da neve começar a cair sem parar. A cidade parou. As estradas foram bloqueadas. Ficamos todos presos dentro da minha casa espaçosa e quente.

No início, parecia uma grande família feliz. Mas a nevasca não parou. Os dias se transformaram em semanas. A comida que eu havia estocado começou a diminuir.

Foi quando a verdadeira natureza dos Silva apareceu.

Eles comiam como se não houvesse amanhã, devorando porções que alimentariam três pessoas. Escondiam comida nos bolsos, nos quartos. Reclamavam que as porções eram pequenas, que minha filha biológica, a pequena Sofia, comia demais.

João, meu marido, um homem gentil e intelectual, tentava apaziguar a situação, mas ele não conseguia ver a maldade nos olhos deles. Ele via apenas pessoas pobres e desesperadas.

Quando a última lata de sopa acabou, o inferno começou.

O Sr. Silva, com os olhos injetados de fúria, agarrou-me pelos cabelos. "Acabou a comida! O que vamos fazer agora, sua mulher inútil?"

Sofia, minha pequena de cinco anos, começou a chorar, assustada. Ela correu para me proteger.

A Sra. Silva a agarrou. "Cale a boca, sua pirralha! Você comeu mais do que todos nós!"

E então, o impensável aconteceu. Na frente dos meus olhos, ela caminhou até a janela do segundo andar, abriu-a com um movimento brusco e jogou minha filha para fora, no meio da neve profunda.

Um grito rasgou minha garganta, um som que não era humano.

João correu para a janela, mas o Sr. Silva o segurou. "Seu marido vai sair e encontrar comida para nós. Se ele não voltar em duas horas, sua vez será a próxima."

Eles o forçaram a sair na tempestade de neve, sem roupas adequadas, sem esperança. Ele nunca mais voltou.

Fiquei sozinha, catatônica de dor, presa com aqueles monstros e com a filha que eu criei, que assistiu a tudo sem dizer uma palavra.

Foi Ana quem me arrastou para o porão.

"Você não serve para mais nada, mãe", disse ela, com a voz fria como o gelo lá fora. "Pelo menos não vai consumir o pouco de ar que nos resta."

Ela trancou a porta.

Eu fiquei lá, no escuro, esperando a morte. Mas a dor se transformou em ódio. Um ódio tão puro e intenso que me deu forças. Encontrei latas de querosene que João guardava para o gerador.

Se eu ia morrer, levaria todos comigo.

O fogo se espalhou rápido. Ouvi os gritos de pânico deles. Ouvi Ana batendo na porta, implorando. Mas tudo que eu via era o rosto de Sofia caindo na neve. Tudo que eu ouvia era o silêncio da ausência de João.

E então, acordei. Aqui. Agora.

No dia em que tudo começou.

Passos no corredor me tiram do meu transe. A porta se abre. É Ana.

Ela está vestindo um pijama de seda caro que eu lhe dei de aniversário. Seu rosto tem a mesma expressão de falsa preocupação que assombra minhas memórias.

"Mãe, você já viu a previsão do tempo? A temperatura vai cair muito. Estou tão preocupada com meus pais..."

A voz dela é um eco do passado, e um calafrio percorre minha espinha. Mas desta vez, não é de frio. É de raiva.

Eu olho para ela, realmente olho para ela pela primeira vez desde que acordei. Não vejo a minha filha. Vejo uma traidora egoísta. Vejo o monstro que ela se tornará.

Um sorriso frio se forma nos meus lábios. Eu sei o que tenho que fazer.

Desta vez, a tragédia não vai se repetir. Desta vez, eu protegerei minha família. A minha verdadeira família.

"Ana", eu digo, e minha voz soa estranha, mais dura. "Nós precisamos conversar."

            
            

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