"Seu apartamento? 'Sua' esposa?" João Carlos explodiu, incrédulo. "Essa mulher é a minha esposa! Eu sou o marido dela!"
Uma vizinha, uma senhora de cabelos brancos, balançou a cabeça. "Não, não. Eu conheço este casal. O senhor Ricardo e a dona Ana Lúcia. Eles moram aqui há quase um mês. São um casal tão simpático."
Outro vizinho concordou. "É verdade. Vemos os dois juntos todos os dias. Nunca vimos esse outro senhor antes."
As palavras dos vizinhos foram como marteladas na cabeça de João Carlos. Eles haviam construído uma vida inteira ali, em menos de um mês. Apresentaram-se como marido e mulher para todo o prédio. Ele não era apenas um marido traído, ele era um fantasma, uma não-entidade na nova vida dela. A humilhação era pública, esmagadora.
O segurança olhou para João Carlos com desconfiança. "Senhor, acho melhor você se retirar."
"Retirar? Esta é a minha esposa!" ele insistiu, desesperado, apontando para Ana Lúcia. "Ana, diga a eles! Diga a eles quem eu sou!"
Todos os olhos se voltaram para Ana Lúcia. Era o momento da verdade. Um momento para ela, talvez, redimir uma fração de sua dignidade, de sua lealdade. Mas ela olhou para o rosto suplicante de João Carlos, depois para o rosto falsamente assustado de Ricardo, e fez sua escolha final.
Com a voz baixa, mas clara o suficiente para que todos ouvissem, ela disse: "Eu... eu não conheço este homem."
O mundo de João Carlos desabou. O chão pareceu sumir sob seus pés. "Não conhece?"
Ela se virou para o segurança, as lágrimas escorrendo pelo rosto, uma performance impecável. "Por favor, tire ele daqui. Ele está me assustando." Então, ela se agarrou ao braço de Ricardo e sussurrou: "Ele é meu marido."
Foi a traição definitiva. Em frente a estranhos, em um país estrangeiro, ela o apagou de sua vida, negou sua existência, o transformou em um agressor louco e desconhecido.
"Você é uma mentirosa!" gritou João Carlos, a dor se transformando em fúria cega. Ele deu um passo em direção a ela, mas o segurança o interceptou, segurando seus braços firmemente.
"Isso é o suficiente, senhor. Vou ter que chamar a polícia."
A polícia chegou minutos depois. A cena era caótica. Ricardo contava sua versão da história, a do homem doente atacado em sua própria casa. Ana Lúcia chorava, confirmando tudo. Os vizinhos davam seus testemunhos, solidificando a imagem de João Carlos como um intruso violento. Suas tentativas de explicar a verdade, de mostrar a certidão de casamento em seu celular, foram ignoradas como delírios de um homem rejeitado e perigoso.
Ele foi algemado.
Enquanto o levavam pelo corredor, passando pelos olhares de condenação dos vizinhos, ele viu Ana Lúcia e Ricardo abraçados na porta. O olhar dela era uma mistura de medo e, ele pensou ter visto, uma ponta de culpa. Mas era tarde demais.
Na delegacia, o cenário era surreal. Ele estava em uma sala de interrogatório, tentando explicar a um policial que mal falava português que tudo aquilo era uma farsa. Horas se passaram. Finalmente, um oficial que falava inglês apareceu e a comunicação melhorou, mas a história ainda parecia inacreditável para eles.
Foi só quando um advogado de ofício apareceu e exigiu provas concretas que Ana Lúcia foi chamada à delegacia. Longe dos olhos de Ricardo e dos vizinhos, pressionada por um oficial da lei, ela finalmente admitiu a verdade.
"Sim... ele é meu marido", ela disse, a voz fraca, sem olhar para João Carlos. "Houve... um mal-entendido."
O policial olhou de um para o outro, exasperado. "Um mal-entendido? Senhora, você acusou seu marido de invasão e agressão, e o negou na frente de testemunhas. Isso é um crime grave de falso testemunho."
Ricardo também foi chamado e, confrontado com a confissão de Ana Lúcia, recuou. Ele ofereceu um acordo. "Olha, vamos esquecer tudo isso. Eu retiro a queixa. Foi tudo um grande erro, emoções à flor da pele. Não precisa ir mais longe."
O advogado de João Carlos o aconselhou a aceitar. Lutar contra isso em um país estrangeiro seria um pesadelo legal. Mas João Carlos, sentado ali, sentindo o frio do metal da algema em seu pulso, olhou para o rosto de Ricardo e sentiu uma nova determinação se solidificar dentro dele. Era uma calma gelada.
"Não", disse João Carlos, sua voz firme. "Eu não aceito."
O advogado o olhou, chocado. "O quê? Mas você será liberado."
"Eu sei. Mas se eu não aceito, ele não pode retirar a queixa oficialmente, pode? A investigação de falso testemunho contra ela continua, não é?" ele perguntou ao oficial.
O oficial assentiu. "Sim. A promotoria pode decidir levar o caso adiante."
"Ótimo", disse João Carlos. Ele olhou para Ana Lúcia, cujo rosto estava pálido de pavor. "Então eu não aceito. Deixem-me aqui."
Ele preferia passar a noite em uma cela a dar a eles a saída fácil que queriam. A batalha estava apenas começando. Ele não seria mais a vítima. Ele não seria mais o tolo. A humilhação que sofreu seria paga. Com juros.