Em casa, o silêncio era pesado. Fui direta ao nosso quarto, o quarto que eu tinha decorado com tanto cuidado. Abri a gaveta da mesinha de cabeceira e tirei a nossa certidão de casamento. Olhei para a fotografia. Eu sorria, um sorriso cheio de esperança e amor. Hugo estava ao meu lado, o seu sorriso era educado, distante. Naquela altura, eu acreditava que o meu amor podia derreter qualquer gelo. Que tolice.
Guardei o documento de volta na gaveta. O divórcio seria finalizado dentro de um mês. Um mês para deixar para trás a fantasia e aceitar a realidade.
Hugo chegou a casa tarde, como sempre. O cheiro do seu perfume caro encheu a sala. Eu estava na cozinha, a terminar de preparar o jantar, os pratos alentejanos que ele adorava e que acalmavam o seu estômago sensível.
"Raegan," ele chamou, a voz desprovida de qualquer emoção. "A gala da vindima é no próximo fim de semana, no Douro. Prepara-te. Partimos na sexta-feira."
Continuei a arrumar os pratos na mesa, de costas para ele.
"Eu não vou, Hugo."
Ele parou. Senti o seu olhar nas minhas costas.
"O que é que disseste?"
"Eu não vou. Não faz sentido. Daqui a um mês, já não serei tua mulher."
Ouvi os seus passos a aproximarem-se. Ele agarrou o meu braço, forçando-me a virar.
"Não sejas ridícula. É por causa da Vanessa? Estás com ciúmes porque ela voltou para Portugal?"
O nome dela, Vanessa Perry, o seu amor de infância, a influencer de lifestyle. O nome que pairava sobre o nosso casamento como uma nuvem de tempestade.
Ele continuou, a sua voz fria e cortante. "Não te esqueças do nosso acordo, Raegan. Três anos. Tu davas-me a imagem de um casamento estável para eu consolidar o meu poder na empresa da família, e eu dava-te o estatuto de Sra. Gordon. O tempo está quase a acabar. Não comeces com dramas agora."
Drama. Era assim que ele via a minha dor.
Uma memória dolorosa invadiu-me. O dia em que assinámos o contrato. Eu estava tão apaixonada, acreditando que três anos seriam suficientes para o conquistar. Ele, por outro lado, foi brutalmente honesto. "O meu coração pertence à Vanessa. Este casamento é apenas um negócio."
Eu aceitei, esperando um milagre.
Houve um tempo, há cerca de um ano, em que a Vanessa estava no estrangeiro e terminou um relacionamento. Hugo ficou destroçado. Chegou a casa bêbado, cheirando a whisky e a desespero. Ele agarrou-se a mim, chamando-a.
"Vanessa... não me deixes..."
Naquela noite, ele dormiu comigo. Foi a nossa primeira e única vez. E durante todo o tempo, ele sussurrou o nome dela. Na manhã seguinte, eu escondi a minha dor. Cuidei da sua ressaca, preparei-lhe o pequeno-almoço e fingi que nada tinha acontecido.
Depois disso, algo mudou. Ele começou a depender de mim. Pequenos gestos. Um toque no ombro, um "obrigado" pelo jantar. Ele até me ofereceu um colar de um designer famoso, dizendo que me ficava bem. Uma pequena chama de esperança acendeu-se no meu peito. Talvez, apenas talvez, ele estivesse a começar a ver-me.
Mas essa esperança foi esmagada há dois meses, quando a Vanessa voltou a Portugal. De um dia para o outro, eu voltei a ser invisível. Ele passava dias fora, noites fora. A casa voltou a ser um espaço frio e silencioso, preenchido apenas pela minha presença ignorada.
O meu telemóvel tocou, interrompendo o silêncio tenso. Era um número desconhecido. Atendi. Era a Vanessa. A sua voz estava em pânico.
"Hugo! A minha avó! Ela passou mal, está no hospital!"
Antes que eu pudesse processar, Hugo arrancou o telemóvel da minha mão.
"Vanessa? O que se passa? Onde estás?"
Ele ouviu por um momento, o seu rosto a transformar-se numa máscara de preocupação. Ele correu para a porta, agarrando as chaves do carro. Ao passar por mim, empurrou-me para o lado sem sequer olhar. O meu ombro bateu com força no batente da porta. A dor foi aguda, mas nada comparada com a dor no meu coração ao vê-lo desaparecer pela porta fora, sem uma única palavra para mim.
Uma hora depois, o telemóvel de casa tocou. Era o Hugo. A sua voz era imperativa, sem qualquer vestígio de preocupação por mim.
"Raegan, vem para o Hospital da Luz. Agora."
"O que aconteceu?"
"A avó da Vanessa precisa de um transplante de fígado. Urgente. Eu sou compatível. Vou ser o dador."
Fiquei gelada. Uma cirurgia daquelas era perigosa.
"Hugo, isso é..."
"Não te chamei para pedir a tua opinião," ele cortou-me, a sua voz dura. "Preciso que venhas assinar os formulários de consentimento. Como minha esposa, és a única que o pode fazer. A Vanessa não pode, legalmente não somos nada. Anda depressa."
Ele desligou. A palavra "esposa" soou como um insulto. Eu era apenas uma ferramenta, uma assinatura num pedaço de papel.
No hospital, a sala de espera estava tensa. A Vanessa chorava nos braços da sua amiga, uma performance para todos verem. Hugo já tinha entrado para a cirurgia. Sentei-me, preenchi os papéis que uma enfermeira me entregou e assinei o meu nome na linha pontilhada. Raegan Hayes Gordon. Uma mentira.
Com a minha tarefa cumprida, levantei-me para ir embora. O meu papel naquela farsa tinha terminado.