Naquela altura, ele olhava para ela como se ela fosse uma deusa, os seus olhos cheios de uma devoção ardente.
Ele lutou contra a sua família, que a desprezava pela sua origem humilde, e casou-se com ela. Comprou-lhe as mais raras guitarras portuguesas antigas, contratou os melhores tutores de música e, mais importante, pagou pelo tratamento médico caríssimo que mantinha o seu irmão mais novo vivo.
Ele amava-a com uma obsessão que a assustava e a lisonjeava. Ele transformou-a, moldou-a, isolou-a do mundo para que ela fosse apenas sua.
Mas o homem que a adorava já não existia.
Agora, Liam olhava para ela com um frio cortante, os seus olhos escuros como a noite lá fora.
"Fiona, foste tu, não foste?" A sua voz era suave, quase um sussurro, mas carregada de uma ameaça que lhe gelava os ossos.
Ele estava a falar de Raegan Perez, a sua nova obsessão.
"Eu não fiz nada." A voz de Fiona saiu fraca, trémula por causa do frio e do medo.
Liam sorriu, um sorriso sem calor. Ele levantou o seu telemóvel, mostrando-lhe o ecrã.
"Ela bloqueou-me. Desapareceu. E aconteceu logo depois de teres saído para 'tomar um pouco de ar' . Diz-me o que lhe disseste."
"Eu não a vi, Liam. Eu juro."
Ele ignorou-a. No ecrã do telemóvel, uma transmissão de vídeo ao vivo começou. Fiona viu o quarto de hospital privado do seu irmão. Viu o ventilador que o mantinha a respirar.
E depois, viu uma mão a desligar o interruptor da energia de emergência. A luz verde do aparelho apagou-se. Um alarme silencioso piscou no ecrã.
"O médico diz que ele não sobrevive mais de cinco minutos sem o ventilador, Fiona. Vou perguntar mais uma vez. O que disseste a Raegan?"
O pânico apoderou-se dela, uma onda de terror que a sufocou. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, misturando-se com a chuva. O seu irmão. A sua única família. A sua fraqueza.
"Fui eu." A confissão saiu num soluço desesperado. "Eu disse-lhe para te deixar em paz. Eu disse-lhe que ela nunca seria a senhora Gordon."
Ela estava a mentir, mas a verdade não importava. A única coisa que importava era o som do interruptor a ser ligado novamente no vídeo. A luz verde voltou a acender-se.
Fiona olhou para Liam, o homem que um dia prometeu protegê-la de tudo e de todos. Agora, ele era a fonte de toda a sua dor. Ela percebeu, com uma clareza dolorosa, que nunca tinha sido insubstituível. Ele não a amava; ele amava a ideia de a possuir.
Há seis meses, ele conheceu Raegan Perez num leilão de arte. Uma artista em ascensão, famosa pela sua "autenticidade" e espírito rebelde. Vinda de uma família modesta do Porto, ela cultivava uma imagem de quem rejeitava o mundo comercial, mesmo que secretamente o cobiçasse. E tinha um defeito cardíaco congénito, uma vulnerabilidade que usava para ganhar simpatia.
Liam ficou obcecado. A recusa de Raegan, a sua persona "indomável" , era um desafio que ele não conseguia resistir.
"É só um jogo, Fiona," ele disse-lhe quando o caso se tornou público. "Ela é uma diversão. Tu és a minha mulher. Sê obediente."
Ela pediu o divórcio. Ele riu-se.
Agora, o telemóvel de Liam tocou. Ele atendeu, o seu rosto a transformar-se instantaneamente. A sua voz, antes fria e cruel, tornou-se calorosa e preocupada.
"Raegan? Onde estás? Estava tão preocupado."
Fiona observou-o, o seu corpo a tremer incontrolavelmente. A pressão, o frio, o terror. Uma dor aguda e violenta atravessou o seu abdómen.
Ela dobrou-se, um gemido de agonia a escapar dos seus lábios. O sangue quente escorreu pelas suas pernas, manchando a seda branca da sua camisa de dormir.
Liam desligou a chamada, os seus olhos brilhando de alívio e alegria.
"Ela está bem. Estava a fazer voluntariado num abrigo de animais. Tão pura."
Ele virou-se para sair, para correr para a sua nova obsessão.
"Liam..." ela sussurrou, a sua visão a escurecer. "O bebé..."
Ele parou por um momento, olhando para o sangue no chão com um leve franzir de sobrancelhas. A sua expressão era de aborrecimento, não de preocupação.
"Não era planeado," disse ele friamente, antes de se virar e sair, deixando-a a sangrar na varanda fria e chuvosa.
Fiona caiu no chão de mármore gelado, a consciência a abandoná-la. A última coisa que sentiu foi a dor da perda. Não apenas a perda do seu filho, mas a perda final e irrevogável do amor que ela pensava ter.
A governanta encontrou-a e chamou uma ambulância. Mais tarde, no hospital, Liam ligou. Não para perguntar por ela, mas para dar ordens.
"Tranquem-na num dos quartos da vivenda de Sintra. Ela precisa de tempo para refletir sobre o que fez."
Confinada ao quarto, com o corpo dorido e o coração vazio, Fiona olhou pela janela para a paisagem cinzenta. A dor da perda do seu filho era uma ferida aberta, mas a indiferença de Liam era o veneno que a infetava.
O amor que sentia por ele, que já tinha sobrevivido a tanto, finalmente morreu.