De Esposa Abandonada a Rainha do Fado
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Capítulo 1

O oficial superior à minha frente olhou-me com uma expressão de pena, as suas palavras a soarem distantes e abafadas nos meus ouvidos.

"Lamento, Sofia. A vaga no programa de intercâmbio cultural no Brasil foi atribuída a outra pessoa."

Senti o meu corpo ficar frio. Tinha passado meses a preparar-me para aquela audição, a sonhar com a possibilidade de me juntar ao meu marido, Tiago, que já tinha sido destacado para o mesmo programa. Era a nossa oportunidade de começar de novo, longe das tensões de Lisboa.

"Outra pessoa? Mas... eu fui a mais bem classificada. Disseram-me que a vaga era minha."

O oficial hesitou, depois suspirou. "Foi o seu marido, o Tenente Gordon. Ele informou o comité que a senhora tinha decidido voluntariamente ceder a sua vaga a uma amiga de infância dele, uma senhora chamada Inês, que, segundo ele, precisava mais desta oportunidade."

Traição. A palavra explodiu na minha mente, deixando um gosto amargo na minha boca. Voluntariamente? Eu não tinha feito tal coisa.

A minha mente recuou para uma conversa de há apenas algumas semanas. Eu tinha pedido a Tiago, com a sua posição na marinha, para ver se conseguia alguma informação privilegiada sobre a audição, talvez uma palavra de recomendação.

Ele olhou-me com desdém. "Sofia, isso não seria justo para os outros candidatos. Na marinha, valorizamos a meritocracia e a justiça acima de tudo. Tens de conseguir isto pelos teus próprios méritos."

Na altura, senti-me envergonhada, mas também um pouco orgulhosa da sua integridade. Agora, a recordação era apenas uma piada cruel. Justiça. Que piada.

Deixei o quartel-general da marinha atordoada, as ruas de Alfama a passarem por mim como um borrão. Em vez de ir para casa, para o apartamento que partilhava com Tiago, os meus pés levaram-me instintivamente a uma pequena e escura Casa de Fados, um lugar que eu não visitava há anos.

O proprietário, o Senhor Matias, um velho amigo da minha família, viu-me entrar e os seus olhos encheram-se de preocupação.

"Sofia, minha querida! O que se passa?"

Não consegui conter as lágrimas. Contei-lhe tudo. Ele ouviu pacientemente, depois pousou uma mão calorosa no meu ombro.

"Esquece o Brasil. O teu fado não pertence a eles. Pertence a Portugal. Eu guardei um lugar para ti, Sofia. O concurso nacional de fado no Porto é no próximo mês. A tua vaga está à tua espera."

Uma pequena chama de esperança acendeu-se dentro de mim. O Porto. Fado. Era a minha paixão, a minha alma, algo que eu tinha sacrificado por um casamento que agora se revelava uma mentira.

Com uma nova determinação, voltei para casa. Ao entrar no pátio, a cena que me acolheu congelou-me no lugar. Tiago estava lá, e Inês também. Ela estava sentada muito perto dele, a cabeça encostada no seu ombro, enquanto ele lhe acariciava o cabelo com uma ternura que eu nunca tinha recebido.

"Tiago," a minha voz saiu mais firme do que eu esperava.

Ele levantou a cabeça, a surpresa a transformar-se rapidamente em irritação. Inês afastou-se, mas o seu olhar era de triunfo.

"Sofia. O que estás a fazer aqui? Pensei que estavas a tratar dos preparativos."

"Que preparativos? Os da Inês para ir para o Brasil no meu lugar?"

Tiago levantou-se, a sua postura defensiva. "A Inês precisa de mim lá. Ela não está bem, precisa de cuidados e proteção. Tu és forte, Sofia. Tu consegues aguentar."

"Forte?" Ri sem humor. "Falas-me de justiça e depois dás a minha oportunidade pelas costas? Negligencias-me, mal falas comigo, e agora isto?"

Ele deu de ombros, a sua indiferença a cortar mais fundo do que qualquer raiva. "Não sejas dramática. Eu sou um oficial da marinha. Tu és a minha mulher. É teu dever apoiar-me. Além disso, eu sustento-te. Não te esqueças de quem paga as contas."

Eu sabia que isso era outra mentira. A maior parte do seu salário, eu suspeitava, ia para sustentar o estilo de vida de Inês, as suas constantes "emergências" e necessidades.

No dia seguinte, a crueldade escalou. Tiago pediu-me para ir à farmácia buscar uma receita para Inês, que supostamente estava com uma gripe terrível.

"Certifica-te de que é o medicamento certo, Sofia. A saúde dela é frágil."

Quando voltei, encontrei Inês deitada no sofá do escritório privado de Tiago. Era um espaço sagrado, um quarto onde nem eu tinha permissão para entrar. Ele estava sentado na beira do sofá, a limpar-lhe a testa com um pano húmido, a sua voz um murmúrio suave e preocupado.

Dei o medicamento a Tiago, que o administrou a Inês. Momentos depois, ela começou a tossir e a engasgar-se, a sua respiração a tornar-se ofegante.

"O que é isto? O que lhe deste?" Tiago virou-se para mim, os seus olhos a arder de fúria. "Estás a tentar magoá-la? És assim tão maliciosa?"

Ele não esperou por uma resposta. Pegou em Inês ao colo e correu para fora da porta, a caminho da clínica, gritando por cima do ombro que a culpa era minha. Fiquei sozinha no escritório proibido, o silêncio a ecoar com a sua acusação injusta.

Naquela noite, algo dentro de mim mudou. Fui ao fundo do meu armário e tirei os meus xailes de fado, o tecido macio e familiar um conforto nas minhas mãos. Coloquei um sobre os ombros e, pela primeira vez em anos, comecei a cantar. A minha voz estava trémula no início, mas depois ganhou força, enchendo a sala com a melancolia e a paixão da minha arte esquecida.

Tiago voltou horas depois. A sua cara contorceu-se de raiva quando me viu.

"O que pensas que estás a fazer? Já te disse que não aprovo esta... coisa. É indigno da mulher de um oficial. Veste-te. Tens de ir à clínica pedir desculpa à Inês e cuidar dela."

Olhei para ele, a música ainda a vibrar dentro de mim.

"Não."

Foi a primeira vez que lhe disse que não. A sua boca abriu-se em choque. Sem dizer mais nada, virei-lhe as costas, entrei no meu quarto e tranquei a porta. Ouvi-o a hesitar do lado de fora por um momento, depois os seus passos afastaram-se. Mais tarde, o cheiro de comida a ser cozinhada chegou até mim. Ele estava a preparar uma refeição. Não para mim. Para ela.

            
            

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