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Ponto de Vista: Luna]
O frio daquela noite parecia mais brando do que o habitual. Talvez fosse só a distração. Talvez fosse a curiosidade, o receio - ou o vestido simples de mangas longas que há tempos não saía do armário.
Luna esperava Theo do lado de fora da pequena trattoria na esquina da Rua Aurora. O lugar era discreto, com iluminação suave e uma varanda envidraçada que deixava a cidade brilhar ao fundo como um quadro em movimento. Quando Theo chegou, usando um sobretudo cinza escuro e um leve sorriso nos lábios, parecia menos empresário e mais... homem. Humano.
- Achei que você fosse desistir - disse ele, enquanto ela ajeitava a alça da bolsa.
- Quase desisti - respondeu, sem rodeios. - Mas não sou de fugir de um jantar... ainda mais quando alguém promete não falar de grãos de café.
Ele riu, abrindo a porta para ela com um gesto sutil.
-
O jantar começou calmo. Velas na mesa, taças de vinho, risotos com nomes complicados. Mas nada era mais delicado do que os diálogos entre os dois - cheios de pequenas pausas, frases carregadas de sentido e uma tensão silenciosa que pulsava entre garfadas e olhares.
- E então - disse Theo, depois de um tempo - por que trabalhar com café?
Luna ergueu uma sobrancelha.
- Porque lidar com grãos torrados é melhor do que lidar com gente mal passada.
Ele sorriu.
- Justo. E você faz isso com maestria. Às vezes fico tentando entender como alguém como você está ali, todos os dias, como se carregasse o mundo e, ainda assim, sorrisse pra ele.
Ela desviou os olhos, desconfortável.
- Você não tem ideia do peso que algumas pessoas carregam.
- Talvez não. Mas estou tentando entender.
O momento foi interrompido pelo toque insistente do celular de Luna. Ela olhou o visor e gelou.
Emily.
- Me dá um segundo - disse, saindo da mesa e atendendo próximo à entrada.
Theo não conseguiu ouvir as palavras, mas viu o corpo de Luna enrijecer e os olhos se tornarem fundos e urgentes.
Ela voltou à mesa com pressa contida.
- Eu preciso ir.
- O que aconteceu?
- Minha mãe... ela piorou. Emily tá sozinha com ela. Eu preciso voltar agora.
Theo se levantou sem hesitar.
- Quer que eu te leve?
- Não. Eu me viro. De verdade.
Ela já vestia o casaco, mas antes de sair, voltou-se para ele.
- Obrigada pelo jantar. Foi... bom. De verdade.
E então, foi embora. Rápida, decidida. Como quem sabe que a realidade não espera por flores na mesa ou finais perfeitos.
-
[Dia seguinte – no Jazz & Café]
A mesa da janela estava vazia. Theo chegou no horário habitual, mas Luna não estava lá.
- Bom dia, senhor - disse Natasha, surgindo atrás do balcão com o sorriso ensaiado de sempre. - Posso te atender hoje?
- Luna não veio?
- Parece que teve um problema pessoal. Acho que ela anda sobrecarregada, sabe? Muitos dramas familiares...
Theo não respondeu. Apenas desviou o olhar.
- O de sempre?
- A menos que prefira algo... diferente hoje - disse Natasha, com um tom ambíguo e o corpo levemente inclinado sobre o balcão.
- Café preto. Forte. Sem açúcar.
Ele falou com firmeza. E voltou o olhar para a mesa vazia.
-
[Ponto de Vista: Luna]
O despertador não tocou naquela manhã, mas Luna já estava de pé antes das sete. O colchão duro da sala, onde dormira após passar a madrugada ao lado da mãe, não ajudava.
A casa cheirava a chá requentado e soro fisiológico.
- Você não vai trabalhar hoje? - perguntou Emily, com voz rouca, sentada à mesa e com o uniforme da escola desabotoado.
- Não hoje. A Sra. Dalton me deu o dia de folga.
Emily pareceu surpresa.
- Uau. Milagre.
- Não exagera - disse Luna, preparando um mingau ralo no fogão. - Isso não vai virar hábito.
- Você devia descansar mais, sabe?
- E as contas vão se pagar sozinhas? - respondeu Luna, sem amargura, apenas com uma verdade que já se tornara automática.
Elas tomaram café da manhã em silêncio. Depois Luna foi à farmácia, comprou dois frascos de remédio com o desconto da receita pública e parcelou em duas vezes. Depois passou na lavanderia para buscar os cobertores emprestados da senhora do andar de baixo. No caminho de volta, comprou uma dúzia de ovos e pão amanhecido.
À tarde, enquanto a mãe dormia e Emily desenhava no caderno com fones nos ouvidos, Luna limpou a cozinha, lavou as roupas acumuladas na varanda e fez uma lista de tudo que precisavam para o mês - riscando, com frustração, metade do que não teriam como comprar.
Sentou-se na beirada da cama, exausta. Com a testa apoiada nas mãos, lembrou-se do jantar. Não pelo vinho, nem pelo ambiente. Mas pelo modo como Theo a ouvira. Sem pena. Sem pressa.
E isso, para ela, era raro.
Mas era também... perigoso.
Ela não queria dever nada a ninguém. Especialmente a um homem com olhos que pareciam enxergar até o que ela tentava esconder.
Enquanto Luna enxaguava as louças da noite, Natasha voltava do turno com os lábios pintados de vermelho e um sorriso vitorioso no rosto.
- Adivinha quem pediu pra ser atendido por mim hoje?
Luna não respondeu.
Mas alguma coisa dentro dela apertou. Como se soubesse que, mesmo não jogando, já havia alguém tentando vencer em seu lugar.