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[Ponto de Vista: Luna]
Nos dias que se seguiram, Theo Montenegro manteve seu ritual. Sempre no mesmo horário. Sempre no mesmo lugar. Mas o silêncio costumeiro começou a ceder espaço para algo novo.
Conversas.
Não muitas. Nem profundas. Mas pequenas perguntas jogadas entre goles de café e olhares discretos.
- Você sempre escolhe essa música de manhã? - perguntou ele, em uma terça-feira chuvosa, referindo-se ao jazz suave que saía da vitrola.
- Não. A vitrola é antiga, tem humor próprio - respondeu Luna, arrumando os talheres na mesa ao lado.
- Ela tem bom gosto, então.
Luna sorriu de canto, sem olhá-lo diretamente.
- Melhor do que muitos humanos.
Essa era a dança: ele provocava, ela respondia com firmeza. Um flerte leve, unilateral, disfarçado sob o verniz da conversa casual.
Na quinta-feira, ele tentou de novo.
- Posso perguntar uma coisa?
- Pode - disse, sem parar de enxugar as xícaras.
- Você sempre faz tudo com essa precisão? É quase... militar.
Ela parou por um segundo. Olhou para ele por cima do ombro.
- Eu gosto de fazer bem feito. E você? Sempre observa os outros como se estivesse decidindo se compra ou vende?
Theo riu, pela primeira vez de forma aberta.
- Touché.
- Isso é francês?
- Algo assim.
- Muito chique pro meu vocabulário - retrucou, voltando a colocar as xícaras na prateleira.
Ele não respondeu, apenas continuou a observá-la com aquele olhar que parecia ver além da superfície.
[Ponto de Vista: Theo]
Ela não recuava. Não se intimidava. Respondia com sarcasmo afiado, mas sem crueldade. Era como uma muralha feita de palavras - firme, mas não hostil. E isso, para Theo, era fascinante.
Ele estava acostumado com admiração automática, sorrisos treinados, e pessoas que mediam cada palavra com medo ou interesse.
Luna não era nenhuma dessas coisas.
Ela era... real.
Quando ele fez mais uma pergunta - desta vez sobre o quadro pendurado na parede, uma pintura antiga de uma rua arborizada - ela respondeu com uma sinceridade que o desconcertou.
- É a única paisagem que me acalma. Não tem carros, nem ruídos, nem relógios. Parece um lugar onde o tempo cansa de correr.
Theo olhou para o quadro, e depois para ela.
- Você fala como quem vive cansada.
- E você como quem nunca parou pra sentir.
Ela pegou a bandeja e saiu, mas havia um brilho nos olhos. Não era desafio. Era algo mais profundo. Talvez... feridas reconhecendo feridas.
[Ponto de Vista: Luna]
Mais tarde, entre pedidos e bandejas, Luna foi abordada por Natasha, uma das novas funcionárias da cafeteria. Loira, sempre maquiada mesmo às sete da manhã, com sorriso doce demais para ser honesto.
- Luna... você tá bem próxima daquele cliente, né? O bonitão do terno - disse ela, mexendo a calda no café com exagero.
- Ele é educado. E insiste em sentar na minha seção.
- Só achei curioso. Ele mal olha pra gente. Mas com você... fica todo conversador.
Luna respondeu com um sorriso sem mostrar os dentes.
- Talvez seja o café.
- Ou talvez seja outra coisa - murmurou Natasha, antes de sair, lançando um olhar de lado.
Luna não respondeu. Mas o incômodo ficou.
[Fim do turno - final da tarde]
O sol já caía quando Luna viu Theo levantar da mesa. Ele pagou como sempre: em dinheiro, dobrando a nota com precisão, como se tudo em sua vida fosse milimetricamente calculado.
Mas antes de sair, parou diante dela, em pé, com as mãos nos bolsos do casaco.
- Luna.
Ela ergueu os olhos.
- Que foi agora? Quer saber qual grão usamos no espresso?
Ele sorriu de leve.
- Não. Quero saber se você aceita jantar comigo.
Ela piscou.
As palavras pareceram dançar no ar antes de pousar em algum lugar dentro dela.
- Um jantar? - perguntou, sem esconder a surpresa.
- Só isso. Um lugar calmo, uma boa comida. Uma pausa. Prometo não falar sobre café ou grãos torrados - respondeu ele, com um leve humor.
Ela estreitou os olhos.
- Você sempre convida funcionárias de cafeterias para sair? Ou só faz isso quando se cansa de ser observado em silêncio?
- Não costumo convidar ninguém. Você é a exceção - disse ele, sem perder a calma.
Luna cruzou os braços.
- E o que exatamente você espera com esse jantar? Não tenho tempo pra joguinhos. Eu trabalho o dia inteiro, chego em casa e cuido da minha irmã. Meus horários livres basicamente não existem.
- Eu não espero nada, Luna. Só quero conhecer você além dos sete metros entre a mesa e o balcão.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos. Observou o rosto dele, tentando entender se havia segundas intenções ocultas. Theo, por sua vez, manteve a expressão tranquila, quase respeitosa.
Ela sabia que poderia simplesmente dizer "não". Ninguém a obrigava a aceitar. Mas, por alguma razão que não conseguia nomear, sentiu que aquele convite não era uma ameaça. Era um ponto fora da curva. Um respiro.
- Tudo bem - disse, por fim. - Um jantar. Mas eu deixo claro desde já: meu tempo é precioso, e eu tenho prioridades. E, só pra reforçar... isso não é um encontro.
- Entendido - respondeu Theo, com um sorriso discreto. - Um jantar, só isso.
Enquanto ele se afastava pela porta do Jazz & Café, Natasha o observava da área dos fundos, com o pano de prato entre os dedos e os olhos semicerrados. Havia algo frio em seu olhar - e não tinha nada a ver com o clima lá fora.
Luna sentiu um leve arrepio subir pela nuca. Não por medo. Mas por uma estranha certeza de que, mesmo sem ter dado muitos passos, ela acabara de cruzar uma linha invisível.