Capítulo 2 2 - O Homem Que Não Sorri

[Ponto de Vista: Luna]

A quarta manhã começou como todas as outras: despertador às seis, chaleira apitando, e Emily batendo na porta do banheiro porque a água do aquecedor ainda não aquecia direito.

- De novo, Luna! Tá fria! - reclamou a irmã, enrolada na toalha.

- Deixa ligado uns minutos antes - respondeu do quarto, vestindo o uniforme amassado. - Já te falei isso mil vezes.

Emily tinha doze anos. E isso já bastava para ser contraditória, dramática e carente em doses alternadas. Desde que a mãe delas fora internada, Luna cuidava de tudo: contas, supermercado, lição de casa, e da própria saúde mental - o que, francamente, ela já deixara de tentar organizar.

Mesmo assim, colocava leite morno na caneca da irmã, ajeitava a blusa no uniforme dela antes de sair, e sorria. Porque ser amarga nunca a levou a lugar algum.

Chegou ao Jazz & Café pouco antes das sete. O ar lá fora cortava como navalha, mas ali dentro o cheiro de café e torta de maçã abafava os pensamentos ruins.

- Claire ainda não apareceu - avisou a Sra. Dalton, do balcão, preocupada. - O forno travou. Ajudaria muito se desse uma olhada nos pães...

- Pode deixar, já estou indo - respondeu Luna, amarrando o avental com um nó firme e indo direto para a cozinha.

Às 8h30, o salão já estava com suas mesas quase todas ocupadas. O velho Sr. Gaspar lia o jornal com os óculos caindo do nariz. Uma professora corrigia provas no canto esquerdo. O som do jazz na vitrola preenchia os espaços vazios entre as conversas.

E então, como previsto, ele entrou.

O homem do terno azul. O olhar quieto. Os passos contidos.

Sentou-se na mesma mesa, ao lado da janela, e esperou em silêncio. Como sempre.

Mas aquela manhã era diferente. Algo dentro de Luna insistia em não deixar o dia seguir igual.

- Sofia - chamou em voz baixa, encostando-se no balcão ao lado da colega. - Já reparou naquele cara do terno azul que vem todo dia?

Sofia arregalou os olhos.

- Você tá falando sério? Você não sabe quem ele é?

Luna franziu a testa.

- Eu devia?

- Aquele é Theo Montenegro. Dono do Montenegro Group. Um dos empresários mais poderosos da Europa. Saiu na Forbes ano passado. É tipo o Elon Musk inglês... sem o Twitter e com mais classe.

Luna riu, mas sem humor.

- Você tá brincando.

- Nunca. Dizem que ele é frio, quase impossível de lidar. E agora ele tá aqui, todo dia, tomando café feito por você.

Ela olhou de novo para ele. Como se estivesse vendo pela primeira vez.

De repente, o avental parecia mais amarrotado. O tênis, mais gasto. E ela, menor.

Respirou fundo, pegou a xícara e se aproximou da mesa.

Dessa vez, ele ergueu os olhos. Pela primeira vez, de forma direta.

- Você sempre trata todo mundo assim, ou só a mim? - perguntou ele, com um leve sorriso no canto dos lábios.

Luna arqueou uma sobrancelha. Dessa vez, sem delicadeza.

- Eu trato todos os clientes com respeito. Só não confunda gentileza com convite.

O sorriso dele hesitou por um segundo, mas não desapareceu.

Baixou o olhar por um instante, como quem processa o golpe com elegância.

- Entendido - murmurou, recuando verbalmente sem perder a compostura.

Ela colocou a xícara sobre a mesa com firmeza, mas sem hostilidade.

- Aqui a gente serve café, senhor... - hesitou - ...senhor.

Ele não completou.

Ela também não insistiu.

- E só café. Confusão não está no cardápio.

Ele a encarou por mais um instante. E então sorriu, de verdade, pela primeira vez. Era um sorriso discreto, quase reservado, como se sorrir fosse algo que ele desaprendera - e agora estivesse treinando de novo.

Pagou em dinheiro. Dobrou o recibo com precisão. Vestiu o casaco. E saiu, como sempre.

Mas Luna ficou parada por alguns segundos, sentindo o coração bater diferente. Não mais rápido. Só... presente.

[Ponto de Vista: Theo]

Lá fora, a névoa ainda cobria a rua de pedra como um lençol velho. Theo andava devagar, mãos nos bolsos, ignorando o celular vibrando com insistência. Mensagens da equipe jurídica. Notícias sobre a auditoria da filial em Bruxelas. Era tudo urgente.

Mas ele não atendeu.

Pela primeira vez em semanas, algo parecia mais importante do que salvar sua reputação.

Naquela noite, Luna voltou para casa carregando uma sacola com pães doados pela Sra. Dalton e o pensamento inquieto de que o mundo ao redor parecia o mesmo... mas ela não estava.

Enquanto Emily fazia dever de casa na sala apertada, Luna olhou para o reflexo da própria expressão no vidro da janela. Havia algo diferente em seu olhar. Uma faísca estranha, como se a rotina tivesse sido levemente alterada.

Ela ainda não sabia que aquele cliente de olhar contido e sorriso raro traria uma avalanche em sua vida.

Mas já sentia a brisa antes da tempestade.

            
            

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