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A livraria amanheceu em silêncio naquela segunda-feira. Havia algo diferente no ar - como se o mundo lá fora ainda não tivesse acordado por completo. Mas dentro do peito de Isadora, o dia já tinha começado há horas. O corpo dela estava ali, arrumando prateleiras, varrendo as migalhas do tapete próximo à sessão de clássicos russos, preparando café como fazia todas as manhãs... Mas a mente dela? Não. A mente vagava em círculos quentes pelo beijo da noite anterior.
Ela ainda sentia os dedos dele entrelaçados nos seus, o gosto do vinho barato que haviam dividido, os olhos escuros dele mergulhados nos seus como se procurassem abrigo. Lembrava-se de como ele sussurrava palavras desconexas entre os beijos, como se não soubesse se estava cometendo um erro ou libertando algo que há muito tentava esconder.
E o pior - ou o melhor - é que ela não sentia culpa.
Sentia vertigem.
Não era apenas o fato de ter beijado um homem casado. Era ter beijado aquele homem. Leonardo Avelar. Um nome que vinha acompanhado de manchetes e cifras, mas que na noite anterior fora apenas um homem solitário com sede de verdade.
Enquanto ajeitava os marcadores de página na caixa de madeira ao lado do caixa, Isadora revivia cada detalhe com a nitidez de quem lê uma cena favorita, repetidamente, sabendo que jamais irá se cansar.
Ele a havia tocado com uma delicadeza que desmentia sua fama. Nada ali lembrava um magnata impiedoso, um executivo de fala fria em salas de reunião. Naquela noite, Leonardo foi apenas... humano. E frágil. Havia uma fissura nele, uma brecha invisível por onde a luz e a dor escapavam, e ela sentiu, com toda a força do instinto, que ele precisava dela.
Isadora passou a manhã entre os livros, mas a alma não descansava. Os clientes vinham e iam - casais, estudantes, senhores de meia-idade buscando romances policiais - e ela sorria, indicava, empacotava, mas tudo parecia uma peça de teatro mal ensaiada. Seu corpo agia por reflexo, mas seu coração estava preso num tempo paralelo. Um tempo em que o toque da mão dele ainda aquecia sua pele.
Às 16h34, o sino da porta soou.
Ela olhou por reflexo - e lá estava ele.
Dessa vez de blazer azul-marinho sobre camisa branca aberta nos dois primeiros botões. Cabelos um pouco molhados, barba por fazer. E nos olhos, um pedido mudo. Havia tensão no ar. Como se os dois soubessem que estavam prestes a cruzar uma linha que não permitia retorno.
- Posso entrar? - ele perguntou, como se a resposta já não estivesse tatuada no olhar dela.
Isadora assentiu, e ele cruzou a livraria sem pressa, como se cada passo dissesse: estou aqui de novo, mesmo sabendo que não devo. Mas ele veio.
Ficaram frente a frente por segundos que pareceram séculos.
- Precisei vir - ele disse.
Ela quis dizer algo, qualquer coisa que quebrasse o gelo denso entre eles. Mas a verdade era que aquele gelo já havia derretido. E agora os dois estavam submersos.
- Eu também - confessou ela.
Leonardo deslizou os olhos pelo ambiente, como se buscasse um refúgio dentro do refúgio. Então apontou com o olhar:
- Aquele sofá dos fundos... ainda é tão confortável quanto parecia?
Ela riu, sentindo a tensão se dissolver um pouco.
- Nunca deixou de ser.
Os dois caminharam até o canto escondido da livraria, atrás da cortina de veludo azul-acinzentada, onde um sofá de couro caramelo descansava sob uma luminária de pé, próximo a uma janela alta que deixava a luz filtrar-se de forma suave. Ali era o lugar onde Isadora lia, às vezes dormia, ou simplesmente se escondia do mundo.
Sentaram-se próximos. Não o bastante para se tocarem, mas próximos o suficiente para ouvir a respiração um do outro. O silêncio entre eles não era desconfortável. Era denso. Vivo.
- Sabe - ele começou, olhando para frente, sem encará-la -, há muito tempo eu não fico assim... sem saber o que dizer. Eu controlo empresas, pessoas, contratos. Mas não consigo controlar o que acontece aqui - e pousou a mão sobre o próprio peito.
- Talvez porque aqui - ela tocou de leve o mesmo lugar no corpo dela - não se assine contratos.
Ele a olhou então. E ela sentiu a gravidade do momento.
- Eu sou casado, Isadora.
Ela sabia. Claro que sabia. Mas ouvir da boca dele era como engolir uma pedra.
- Eu sei.
- Não é um casamento feliz. Há anos. Mas ainda é um casamento.
Ela respirou fundo.
- E mesmo assim, está aqui.
Ele hesitou. Os olhos dele estavam marejados de algo entre culpa, desejo e cansaço.
- Estou aqui porque... quando estou com você, eu me sinto limpo. Verdadeiro. Não tem aparência, não tem obrigação. É como se o mundo parasse de gritar. - Ele passou a mão nos cabelos, exasperado. - Eu estou me perdendo e, ao mesmo tempo, me encontrando, Isadora.
Ela queria dizer que sentia o mesmo. Que estar com ele era como mergulhar num lugar onde o tempo dobrava, onde tudo fazia sentido mesmo quando parecia errado.
Mas preferiu apenas segurar a mão dele.
Foi um gesto simples. Mas o suficiente para que ele fechasse os olhos. E respirasse fundo. E apertasse sua mão de volta.
A tarde passou ali, entre confissões. Ela contou que morava sozinha, que nunca havia se casado, que tinha uma mãe distante e um pai que partira cedo demais. Contou sobre o amor pelos livros desde criança, sobre os cadernos onde escrevia histórias que nunca mostrava a ninguém. E ele, aos poucos, revelou mais do que imaginava. Sobre a infância em colégios internos. Sobre a solidão mesmo cercado de luxo. Sobre como o poder cobra um preço - e como ele pagava em parcelas de insônia e silêncios.
Quando a noite caiu, ele ainda estava ali. E os dois sabiam que precisavam ir embora. Mas não se moviam.
Foi ela quem, por fim, quebrou o feitiço.
- Você precisa ir.
- Eu sei.
- E vai voltar?
Ele a encarou, e nos olhos dele havia um sim tão intenso que não precisava ser dito.
- Eu quero voltar. Mas... isso é perigoso. Para nós dois.
Ela abaixou o olhar. Queria pedir que ele ficasse. Que largasse tudo. Que recomeçassem num lugar onde o nome dele não viesse com escândalos, onde os braços dele pudessem ser casa e não segredo.
Mas ela era inteligente demais para pedir isso.
Então, apenas disse:
- Eu te espero. Mesmo sabendo que não devo.
Ele se inclinou e beijou sua testa. Foi o beijo mais terno que ela já havia recebido. Mais íntimo que todos os outros. Um beijo que dizia: eu queria poder ficar, mas ainda sou prisioneiro do meu mundo.
E então, ele se foi.
Isadora fechou a livraria uma hora depois. Sozinha. Com o coração doendo e pulsando ao mesmo tempo. Subiu até o pequeno apartamento acima da loja, onde morava. Tirou os sapatos, preparou um chá de camomila, sentou-se na poltrona e olhou a cidade pela janela.
E ali, naquela noite solitária, ela começou a escrever. Pegou um dos seus cadernos antigos, abriu na primeira página e escreveu:
"Ele entrou na minha vida como quem invade um santuário - sem pedir licença, mas sem destruir nada. Apenas mudou tudo de lugar."
Fechou os olhos.
E dormiu sonhando com o único homem que a fez esquecer a solidão dos próprios silêncios.