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O sol daquela terça-feira era quase cruel. Tinha uma claridade ofuscante, como se o céu quisesse expor o que devia permanecer escondido. Do lado de dentro da livraria, Isadora ajeitava os livros com movimentos lentos, quase melancólicos. Dormira mal - se é que havia dormido. Passara a madrugada inteira ouvindo as palavras de Leonardo ecoando dentro de si: "quando estou com você, eu me sinto verdadeiro."
Ela já tinha lido dezenas de histórias sobre amores proibidos. Lia como quem aprecia um drama distante, comovente, mas seguro. Nunca pensou que, um dia, estaria dentro de uma dessas histórias. Como personagem. Como protagonista. Como a outra.
As mensagens começaram discretas.
Um número desconhecido enviou, às 10h12:
"Bom dia, Isadora. Eu precisei sair antes de dizer o quanto ontem significou pra mim."
Em seguida:
"Se você permitir, eu gostaria de te ver hoje à noite. Sem promessas, só... presença."
Isadora demorou quase vinte minutos para responder. Apagara e reescrevera diversas vezes, entre frases que oscilavam entre prudência e desejo. No fim, foi breve.
"Hoje estarei aqui até às 20h. Depois disso, sou só silêncio."
Às 20h em ponto, a livraria estava vazia. A cidade começava a se recolher. As luzes do poste piscavam do lado de fora, anunciando que a noite chegara de vez. E com ela, ele.
Leonardo entrou com os ombros tensos. Usava apenas camisa e calça social. Sem blazer, sem relógio, sem pose de CEO. Os olhos estavam vermelhos. Exaustos.
- Você não parece bem - disse Isadora, caminhando até ele, segurando o impulso de tocá-lo.
- Tive uma reunião com minha esposa - ele respondeu. - Uma daquelas em que ninguém grita, mas todo mundo sangra por dentro.
Isadora não sabia o que dizer. Não sabia até onde podia ir. Se devia perguntar. Se devia apenas ouvir.
- Ela sabe? - arriscou.
- Não. Mas ela sente. E, de certa forma, eu acho que ela não quer saber. Beatriz é feita de conveniências. O que importa pra ela é que o nome dela esteja onde deve estar, que a vida continue a girar como um relógio suíço. Mas a verdade... a verdade grita demais aqui dentro - disse ele, tocando o peito. - E você... você é essa verdade.
Ela sentiu a garganta fechar. Aquilo era perigoso demais. Mas era também verdadeiro demais para fingir que não estava ali.
- Eu não quero ser um segredo, Leonardo. Eu não nasci para isso.
- E eu não quero te esconder. Mas... meu mundo não é fácil. Ele é sujo. Frio. Ele vai tentar te engolir.
- E mesmo assim, você está aqui - ela disse, quase num sussurro.
Ele se aproximou. Olhou-a como quem olha algo sagrado.
- Porque você é o que ainda me resta de humano.
E então, o beijo.
Dessa vez não foi hesitante. Foi urgente. Necessário. Como se o corpo de um tivesse encontrado no outro a única morada possível.
Isadora o puxou pela nuca, sentindo o calor dele se fundir ao seu. Os corpos se encaixavam como se já se conhecessem de outras vidas. Entre suspiros e mãos trêmulas, ela guiou Leonardo até o andar superior, onde morava, pela escada de madeira estreita que rangia em cada passo.
O apartamento era pequeno, acolhedor. Paredes cobertas por quadros com frases de autores esquecidos, estantes improvisadas com mais livros do que cabia, uma poltrona manchada de tinta aquarela, uma planta morrendo no canto.
Ali, no meio daquela bagunça encantadora, ele tirou os sapatos, como quem pede licença a um templo. Sentou-se na beirada da cama, os olhos marejados pela emoção contida.
- Você não é o que eu esperava. Você é... mais.
Ela ajoelhou-se diante dele, segurando-lhe o rosto entre as mãos.
- Então fique. Só hoje. Não pense. Não volte pra aquele mundo ainda. Deixe ele esperando.
Leonardo a deitou na cama com delicadeza. Como se cada movimento precisasse ser memorável. E foi.
Naquela noite, os corpos se encontraram como poesia. Lentos. Intensos. Carregados de desejo, mas sem pressa. Era como se eles quisessem decorar cada detalhe da pele um do outro, como se soubessem que o amanhã poderia não vir. Leonardo traçou mapas com os dedos pelas curvas de Isadora. Ela sussurrou promessas sem palavras contra a pele dele. Cada toque era um grito mudo, um pedido para que o tempo parasse.
E ali, entre lençóis e silêncio, eles dormiram juntos. Pela primeira vez.
Leonardo acordou antes do sol nascer. Sentado na ponta da cama, observava a cidade ainda adormecida pela janela. Vestiu-se devagar. Deixou um bilhete sobre a mesa com poucas palavras:
"Não sei como será o amanhã. Mas ontem... foi o melhor pedaço de mim."
Isadora acordou com a ausência dele ao seu lado. Tocou o travesseiro ainda quente, leu o bilhete com os olhos cheios de saudade. Sentou-se na cama e olhou pela mesma janela que ele olhara horas antes.
Ela não chorou. Mas uma lágrima solitária desceu por seu rosto. Não era tristeza. Era reconhecimento. O que eles tinham vivido era real. Era amor, mesmo nascido na sombra.
A vida real logo bateu à porta - entregas, fornecedores, e-mails. Mas dentro dela, uma nova Isadora nascia: uma que conhecia a dor e a delícia de amar alguém que o mundo dizia ser errado.
E naquele dia, ela escreveu mais uma vez no caderno:
"Há amores que nascem para durar uma vida. E há aqueles que duram apenas uma noite - mas que transformam todas as outras para sempre."