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A chuva caía com força naquela noite, como se o céu estivesse lavando uma ferida que ninguém mais via. Do lado de dentro da livraria, o mundo de Isadora estava lentamente se despedaçando, centímetro por centímetro. Cada notícia, cada comentário maldoso nas redes sociais, cada cliente que entrava com o olhar cheio de julgamento era um prego na sua alma.
O amor que antes parecia um santuário agora se tornava um campo minado.
Ela havia deixado de ser Isadora, a mulher dos livros, para se tornar a amante do CEO - um título que não escolhera, mas que colara em sua pele como uma cicatriz aberta. A cidade cochichava. Os amigos sumiam. E a família, que nunca fora exatamente próxima, preferiu o silêncio incômodo das ausências.
Leonardo estava enfrentando sua própria guerra.
Beatriz entrara com um pedido de separação litigiosa. Em cada linha da petição, havia veneno. Alegações de traição, desonra, dano à imagem familiar. A exposição não foi sutil - ela vazou documentos, sugeriu envolvimento de Leonardo em fraudes corporativas, e mobilizou parte da imprensa especializada para transformar o nome dele em alvo.
Os sócios da Avelar Group começaram a agir. Em uma reunião de emergência do conselho, Leonardo foi afastado temporariamente da presidência.
Por três dias, ele desapareceu.
Isadora tentou não enlouquecer.
Sabia que ele precisava de espaço. Sabia que o mundo dele estava desabando. Mas o silêncio... ah, o silêncio era cruel. Ela não queria mais ser sombra, recado, bilhete escondido. Queria ser parte da vida dele - mesmo que essa vida estivesse desmoronando.
Na noite do quarto dia, ele apareceu.
Molhado, barba por fazer, olhos escuros fundos como nunca. Parecia menor. E ao mesmo tempo, mais humano do que nunca.
- Me tiraram da minha própria empresa - disse ele, enquanto ela o conduzia até o sofá da livraria. - Um império que eu construí desde os vinte e dois anos. Um por um, todos me viraram as costas. Por medo. Por conveniência. E, claro, por influência dela.
Isadora se ajoelhou à frente dele. Pegou sua mão.
- Eu estou aqui.
- Mas eu estou te arrastando pra dentro do meu inferno - disse ele, com a voz quebrada. - Isso aqui... nós dois... está nos destruindo. E eu estou com medo de você se perder nesse processo. Medo de te quebrar, Isadora.
Ela mordeu o lábio. Respirou fundo.
- Eu já me quebrei. Desde a primeira vez que você me beijou. Desde o dia em que escolhi te amar mesmo sabendo de tudo. Mas ao contrário de você, eu não tenho nada a perder. Você... você tinha o mundo. E agora só tem a mim. Isso deveria me fazer feliz, mas me assusta. Porque eu não quero ser sua ruína.
Leonardo puxou-a para o colo. Abraçou-a com força. Como quem se agarra ao último pedaço de terra firme em meio a um naufrágio.
- Você não é minha ruína. É o que me mantém inteiro.
Mas por mais que dissesse isso, o mundo ao redor não parava de bater. Os tabloides continuavam publicando matérias sensacionalistas. Uma ex-funcionária do grupo afirmou ter testemunhado Leonardo e Isadora juntos em um evento privado meses antes do escândalo vir à tona. Beatriz agora jogava pesado, envolvendo até o Ministério Público ao acusar o ex-marido de má gestão e ocultação de patrimônio.
E Isadora, cada vez mais reclusa, começou a adoecer em silêncio.
As noites passaram a ser invadidas por insônia. O apetite desapareceu. Os livros, antes refúgio, tornaram-se apenas ruído. Até os cheiros que costumavam acalmá-la - café, tinta, papel - começaram a provocar náusea. Ela se via cada vez mais cansada, emocionalmente exaurida. E, no fundo, uma pergunta cruel nascia:
Será que o amor é suficiente para sobreviver a tudo isso?
Leonardo, ainda tentando salvar algo de sua reputação, passou a dividir seu tempo entre escritórios de advocacia e reuniões com consultores de imagem. Começou a viajar para São Paulo com frequência. Voltava dias depois, abatido, exausto, e por vezes... distante.
- Você ainda me ama? - perguntou Isadora certa noite, com a voz embargada.
Leonardo, deitado ao lado dela, demorou a responder. E quando respondeu, o fez com dor:
- Eu amo você mais do que amei qualquer coisa na vida. Mas estou começando a não saber mais quem eu sou. E tenho medo de perder você no meio dessa guerra.
- Eu estou aqui.
- Mas por quanto tempo, Isadora? Até quando você vai aguentar ser odiada por todos, viver escondida, fugir de câmeras, ver sua vida se despedaçar por algo que nem sabemos se vai resistir?
Ela não soube responder.
Na manhã seguinte, Leonardo partiu novamente. Sem previsão de volta.
Sozinha, Isadora decidiu caminhar até o centro. Precisava respirar, ver gente, lembrar que existia fora daquele romance sufocante. Mas não durou muito.
No meio da rua, alguém a reconheceu.
- Olha quem é... a amante do CEO. Tá se escondendo por quê?
Era uma mulher, talvez da mesma idade de Isadora, com uma expressão de desdém e ironia. Atrás dela, duas outras filmavam com o celular.
- Deve tá feliz, né? Quebrou um casamento. Tirou o emprego do cara. Tá orgulhosa?
Isadora tentou atravessar, mas a mulher se pôs à frente.
- Vai correr? Vai fingir que é vítima? Você não tem vergonha?
As lágrimas começaram a escorrer. Isadora tremia. Pessoas ao redor olhavam. Sussurravam. A multidão invisível agora era real.
Ela correu.
Entrou num táxi, com as mãos tremendo. Chegou em casa e vomitou. Chorou até o corpo doer. E então, pela primeira vez, escreveu algo no caderno que não tinha poesia:
"O amor não é só flor. É faca. E hoje, eu estou sangrando por cada escolha que fiz."
Dias depois, Leonardo voltou.
Mas era outro homem.
O processo judicial estava em curso. A imprensa havia recebido provas falsas, mas convincentes. Beatriz estava vencendo. E ele... cansado.
- Eu preciso proteger você - disse ele, com os olhos fixos nos dela. - E talvez... talvez isso signifique te deixar ir.
Isadora parou. O mundo parou.
- O quê?
- Eu não estou desistindo de te amar. Mas talvez... por agora... eu precise tirar você disso. Talvez o que temos só possa sobreviver se a gente soltar por um tempo.
Ela recuou. O chão sumiu.
- Você está me deixando?
- Eu estou tentando te salvar.
- Não. Você está tentando se salvar de mim. E talvez... talvez eu também precise me salvar de nós.
Eles se olharam.
Dois sobreviventes. Dois corações exaustos. Duas almas que se amavam demais, mas estavam ferindo uma à outra com a própria dor.
E então, ela disse:
- Vai. Se for preciso. Mas se um dia voltar... volte inteiro. Porque da próxima vez, eu não vou aceitar pedaços.
Ele a abraçou como se fosse a última vez.
E foi.