Usei a chave com cuidado para não fazer barulho. Minha mãe dormia no quarto dela - ou pelo menos esperava que dormisse. A internação no hospital durou dois dias, e mesmo agora, em casa, o estado dela ainda exigia atenção constante. Mas, ao que tudo indicava, ela não tinha percebido minha ausência.
No banheiro, lavei o rosto pela terceira vez, como se quisesse apagar todos os traços daquela noite. A água gelada escorria, mas o calor na pele permanecia. O corpo ainda doía - não de dor física, mas de memória. E cada vez que fechava os olhos, sentia as mãos dele de novo. Os olhos. O controle. A intensidade.
E mais que tudo... o vazio que veio depois.
Vestida com a mesma calça jeans e uma blusa larga, sentei à mesa da cozinha. A luz fraca da lâmpada iluminava as louças por lavar e as contas empilhadas. Peguei o celular. A notificação da transferência estava lá.
"R$ 15.000,00 - Leonardo De Santis."
Toquei na tela. O número estava na conta. Real. Vivo. Como uma cicatriz.
A primeira coisa que fiz foi pagar o aluguel. Depois, quitei a luz e a água. Em seguida, liguei para a farmácia e pedi dois meses dos remédios da minha mãe. A atendente ficou em silêncio quando eu disse que pagaria tudo à vista. Quase consegui ouvir a surpresa dela do outro lado da linha.
Fiz tudo como se estivesse em modo automático.
Depois fui ao mercado, comprei frutas frescas, legumes, frango, arroz, feijão... e até algumas coisas que não comprava há muito tempo: iogurte, leite, pão de verdade, não aquele barato com gosto de papel.
A atendente me deu um sorriso.
- Vai comemorar?
Fiz força para sorrir de volta.
- Algo assim.
Na volta para casa, minha mãe estava acordada. Sentada no sofá, enrolada na manta que eu já havia costurado duas vezes. Estava pálida, mas viva. E isso bastava para me manter em pé.
- Onde você estava, filha? - perguntou com a voz fraca, mas curiosa.
- Saí cedo para resolver umas coisas - menti. - Tinha umas contas para pagar, fui ao mercado... olha aqui, comprei sua bolacha preferida.
Ela sorriu. Os olhos brilharam como os de uma criança. Pegou o pacote com as mãos magras e beijou-o como se fosse um presente de Natal.
- E os remédios? Já estão vindo?
Assenti. Quase chorei.
- Chegam ainda hoje.
Ela respirou fundo, emocionada.
- Como você conseguiu?
A pergunta ficou no ar como uma corda apertando meu pescoço.
- Consegui um dinheiro extra. Um bico. Uma ajuda.
- Filha... não se endivide por mim.
Segurei a mão dela.
- Não me endividei. Eu... apenas fiz o que precisava.
Ela acariciou meu rosto com ternura. Aquele toque me destruiu por dentro. Como podia aquela mulher me olhar com tanto amor, quando eu mesma não conseguia mais me encarar no espelho?
Fiz o almoço. Comemos juntas. Rimos um pouco. E pela primeira vez em meses, a comida na mesa foi digna de verdade. Um prato cheio, colorido, saudável.
Minha mãe comeu pouco, mas comeu feliz.
Depois que ela dormiu, fui para o quarto e tranquei a porta.
Desabei.
Não gritei. Não bati em nada. Apenas sentei no chão, encostada na parede, com os joelhos ao peito e chorei.
Chorei por me sentir suja.
Chorei por ter gostado.
Chorei porque nada disso mudava o fato de que eu faria de novo.
Faria. Porque ela precisava.
Porque ninguém mais faria por mim.
Fiquei ali por quase uma hora. Até a campainha tocar.
A farmácia.
Recebi os remédios, paguei e agradeci como se fosse a pessoa mais equilibrada do mundo. Organizei tudo no armário, fiz o chá da tarde da minha mãe, limpei a casa e ajeitei a roupa que deixei na lavanderia.
Tudo certo. Tudo no lugar.
Só que nada estava.
Quando anoiteceu, me deitei sem jantar. O estômago revirava só de lembrar da voz dele dizendo:
"Você me serviu bem."
Fechei os olhos e tentei dormir. Não consegui. Era como se minha mente estivesse rachada. Parte de mim queria apagar aquela noite. A outra... revivia cada detalhe com uma intensidade perturbadora.
E foi aí que o celular vibrou.
A tela acendeu.
CINTHIA.
"Oi, amor. Como está se sentindo?"
Respirei fundo. Pensei em não responder. Mas meus dedos foram mais rápidos que minha cabeça.
"Sobrevivendo."
"Isso é um começo. Ele falou algo?"
"Disse que quer ver duas vezes por mês. Já transferiu o dinheiro."
"Então... já está dentro."
Aquela frase me fez engolir seco.
"Dentro."
Como se fosse uma organização. Uma rotina. Um clube do qual, agora, eu fazia parte.
"Ele te magoou?" - Cinthia perguntou.
Demorei para responder.
"Não. Só me deixou vazia."
"Isso vai passar. Você vai aprender a separar."
"E você aprendeu?"
"Na marra."
O silêncio entre nós pesou por alguns segundos.
"Se quiser desistir, agora é a hora." - ela escreveu. - "Depois fica mais difícil."
Mas eu já sabia.
Não tinha mais volta.
"Não vou desistir."
Cinthia respondeu com um emoji de coração.
E, antes que eu pudesse reagir, outra mensagem chegou:
Número desconhecido:
"Próximo sábado. Mesmo hotel. 21h. Esteja pronta."
Nenhum nome.
Nenhuma assinatura.
Mas eu sabia.
Era ele.
O sábado parecia distante. Mas ao mesmo tempo, cada minuto que passava me empurrava mais para o que viria.
Tentei viver normalmente pelos dias seguintes. Continuei no trabalho da cafeteria. Na loja de conveniência. Voltei a sorrir para os clientes. A limpar mesas. A aguentar grosserias. A fingir.
Mas algo em mim já não era o mesmo.
De madrugada, sonhava com ele. Acordava ofegante. Tocava o próprio corpo com culpa. O prazer agora vinha sempre misturado com a lembrança dos olhos dele, da voz, do cheiro.
E isso me envergonhava mais do que tudo.
Na sexta-feira à noite, enquanto ajeitava os cabelos para dormir, parei diante do espelho por longos minutos.
Observei minhas curvas. Minhas olheiras. Meus olhos fundos. Meus seios marcados por leves sombras de dedos que eu não queria lembrar, mas não conseguia esquecer.
E uma pergunta me atravessou:
Quem estou me tornando?