Continuou me olhando, como se me atravessasse com os olhos. A testa levemente franzida, como quem tenta alcançar uma memória que nunca existiu ou não devia existir.
Então ele deu um passo na minha direção.
E eu, incapaz de entender porque ele lembrara de mim naquela vida, e completamente assustada com o que aquilo significava, corri.
As ruas pareciam estreitas demais, enquanto meus passos apressados passavam no meio da multidão, as calçadas cheias. Esbarrei em pessoas, tropecei em mim mesma, mas continuei correndo. Sem olhar para trás. Sem respirar direito.
Entrei por uma viela, os pulmões em chamas, o coração disparado. Encostei na parede fria, tentando silenciar meus pensamentos.
"Você é covarde." Talvez. Mas eu já conhecia o fim daquela história. E ele sempre doía.
Fechei os olhos. Me forcei a respirar.
E foi então que ouvi:
- Por que você fugiu?
A voz dele. Atrás de mim. O que diabos aquilo significava? Ele me seguiu? Por quê?
Virei devagar, cada músculo tenso, esperando o golpe, a acusação... a rejeição. Mas ele apenas me olhava.
- Desculpa - disse, erguendo as mãos num gesto de paz. - Não queria assustar você.
Ele era alto. Mais alto do que eu lembrava nas últimas vidas. Os cabelos escuros estavam ligeiramente bagunçados, e os olhos... aqueles olhos. Intensos. E ainda assim, confusos.
- Eu só... achei que te conhecia.
Sorri de canto, amarga.
- Não conhece. Ninguém nunca conhece.
Tentei passar por ele, mas sua mão se ergueu, apenas o suficiente para me deter.
- Espera. Qual é o seu nome?
Hesitei.
- Lyris.
- Lyris - ele repetiu, como se provasse o som na língua. Como se fosse... familiar. - Eu sou Kael. Kael Noctis.
O nome caiu sobre mim como um trovão.
Kael Noctis. Alfa.
Eu já tinha ouvido esse nome nos sussurros das ruas, nos jornais esquecidos nos cafés. Um alfa importante, de uma das famílias mais antigas da região. Perigoso. Reservado.
E, agora, o meu companheiro. De novo.
- Sinto muito, Kael. Eu estou atrasada - menti, o medo rasgando minha garganta.
- Mas a gente se conhece, não é? - ele insistiu, dando um passo mais perto. Os olhos se estreitaram. - Eu acho que eu... Eu tenho... sonhos com você. Desde antes de te ver hoje.
Minha pele se arrepiou. Como aquilo era possível? Aquilo jamais aconteceu em nenhuma outra vida. Será que eu ainda estava dormindo e aquilo era só mais uma parte dos meus pesadelos recorrentes?
- Você está me confundindo. Isso acontece... com muita gente - mesmo assim, murmurei, sem encará-lo.
- Não com esse tipo de sonho - ele rebateu. A voz mais baixa, carregada. Quase sombria. - Não com a mesma mulher morrendo nas minhas mãos.
Meu coração parou por um segundo.
Ele sonhava com as mortes. Comigo.
Aquela revelação me empurrou para o abismo.
Não podia acontecer. Não agora.
- Eu tenho que ir - sussurrei, e antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, me virei e desapareci na multidão.
Outra vez.
***
Naquela noite, o pesadelo voltou. Chamas. Dentes. Gritos.
A lembrança da minha última morte misturava-se com a voz dele: "Você não é nada pra mim." Mas havia algo novo. Algo que nunca acontecera antes. No sonho... ele chorava.
E aquilo pareceu doer mais do que quando ele enfiara suas garras no meu peito.
- NÃO! - Me levantei da cama em um sobressalto, só para saber que o dia já nascera e eu precisava seguir em frente.
Aquela manhã chegou cinza e silenciosa. O cheiro de café barato e pão dormido preencheu a lanchonete onde eu trabalhava. Era um lugar simples, mas discreto. Ideal para alguém como eu.
Fazia uma hora que o expediente tinha começado. O avental amassado, a xícara na mão e o pensamento longe, até o sininho da porta tocar.
Olhei por cima do ombro.
E lá estava ele.
Kael.
Vestindo uma jaqueta escura, as mãos nos bolsos. O olhar direto em mim.
- Você de novo? - murmurei sem querer.
Ele sorriu de lado, aquele sorriso de quem sabe que está cruzando uma linha.
- Eu sabia que te conhecia de algum lugar.