Ele Era Meu Destino (Mas Também Meu Fim)
img img Ele Era Meu Destino (Mas Também Meu Fim) img Capítulo 4 A segunda vida em que desejei que fosse mentira
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Capítulo 6 O que você é img
Capítulo 7 A prisioneira entre lobos img
Capítulo 8 Ecos de outras vidas img
Capítulo 9 Vínculo quebrado img
Capítulo 10 Lembranças Sangradas img
Capítulo 11 A revelação img
Capítulo 12 A marca da guardiã img
Capítulo 13 A chegada de Yrene img
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Capítulo 4 A segunda vida em que desejei que fosse mentira

A noite caiu pesada, como se o céu tivesse engolido todas as cores do mundo. Depois do que aconteceu, fechei a lanchonete mais cedo. Precisava de ar. De silêncio. De distância. Mas o universo tem um senso de humor cruel.

Eu estava trancando a porta quando ouvi passos. O instinto me fez virar rápido, me preparando para uma batalha, a chave ainda na mão. Mas hesitei quando vi que era ele.

Kael. De novo.

- Não vim discutir. - Ele levantou as mãos, como quem se entrega. - Só... achei que você devia saber. A senhora Alzira está bem. Me ligaram do hospital. Ela perguntou de você.

- Obrigada - respondi, seca. Queria parecer indiferente. Mas a verdade é que o meu peito doía de gratidão e medo.

- Posso te acompanhar até em casa? Tá escuro. - A preocupação nos olhos dele parecia genuína. E isso me irritava mais do que qualquer ameaça.

- Não precisa. Eu conheço o caminho.

Dei as costas. Comecei a andar. Mas os passos dele vieram logo atrás.

- Não sabe escutar um "não"? - perguntei, sem me virar.

- Escuto muito bem. Só que às vezes a gente ignora o que ouve... quando sente o oposto.

- Isso não é justo. - Parei e me virei para ele. - Você não sabe o que tá fazendo. Não sabe o que arrisca.

- E se eu quiser arriscar? - O tom dele era baixo. Quase um sussurro. - E se, mesmo sem saber, eu já estiver envolvido até o pescoço?

Antes que eu pudesse responder, um estrondo ecoou no beco ao lado. Um som metálico. Violento. Kael avançou instintivamente, ficando entre mim e o barulho.

- Fica aqui - disse, e percebi quando suas garras começaram a apontar; o seu lobo desejando ardentemente aparecer.

Ele entrou no beco. E eu sei que eu devia ter corrido. Me afastado. Mas alguma coisa me puxou. Curiosidade. Instinto. Destino? Segui em silêncio, o buscando.

E então o vi: Kael em posição de combate, de frente para uma sombra grotesca que parecia saída de um pesadelo. Um homem, ou o que um dia foi, com olhos negros e garras que brilharam sob a luz do poste.

- Saia daqui, Lyris! - ele gritou.

Mas era tarde demais. A coisa me viu. E veio na minha direção. Kael se jogou entre nós, e a luta começou quando ele entrou em seu estado lupino. A luta foi brutal. Lâminas surgiram de suas garras, faiscando sob o luar enquanto ele avançava sem hesitar.

E bem ali, uma guerra começara; a batalha de garras contra lâmina. Gritos abafados. O som seco de pancadas, de uivos.

Meu coração batia como um tambor. Eu queria fechar os olhos, mas não conseguia. Ele lutava por mim. Por alguém que ele nem lembrava direito. Ou talvez lembrasse demais

Até que de repente, em um golpe certeiro, Kael perfurou o peito da criatura. Ela gritou, um som sobrenatural. E em seguida caiu, dissolvendo em sua forma humana.

Kael caiu de joelhos logo em seguida, voltando a se transformar.

- Kael! - corri até ele. Sangue escorria do seu ombro. Seus olhos estavam turvos.

- Você tá bem? - ele perguntou, a voz rouca.

- Eu? Você é quem tá sangrando!

- Eu te protegi dessa vez... - ele murmurou. - Não falhei. Não dessa vez...

- Do que você tá falando?

Mas ele apagou antes de responder.

**

Ele acordou horas depois no meu apartamento. Estava deitado no sofá, o ombro enfaixado. Eu não tinha opção além de trazê-lo para cá. Não podia levá-lo ao hospital, não depois do que vi.

- Você me trouxe para sua casa? - ele perguntou, piscando devagar.

- Tinha escolha?

Ele sorriu.

- Você é muito rígida.

- E você... - Olhei para ele. - O que você é, Kael?

Silêncio. Depois, ele respondeu com uma voz mais baixa do que nunca:

- Para você pode parecer loucura, mas eu sou o homem que jurei que te protegeria. - ele começa e eu engulo em seco. - Em meus sonhos, é isto que juro, em cada vida. Mesmo que eu não lembrasse de todas. Meu corpo lembra. Meu coração também. Ao menos é assim lá e não me diga que tudo isso é coincidência.

Engoli em seco. Não havia como fugir daquilo.

- Lyris - ele sussurrou em seguida -... o que nós somos?

- Uma história antiga demais pra ser contada com segurança.

- Mas eu quero ouvir. - Ele se aproximou. - Me conta. Ou me mostra.

E então, por um segundo, pensei em ceder. Em tocá-lo. Em contar tudo. Mas o celular tocou.

A tela tremeluzia. O número não existia nos registros. Mas o frio na nuca que senti era real. Como se alguém estivesse ali. Vendo tudo.

Era uma mensagem. Sem nome. Apenas um número. Um aviso.

"Se ele lembrar tudo, você morre primeiro."

E ali, naquela sala com cheiro de sangue, passado e promessas quebradas... eu soube.

Não era o destino que nos empurrava.

Era a maldição.

A mensagem ainda brilhava na tela do celular como um presságio cruel: "Se ele lembrar tudo, você morre primeiro." Deletei. Mas o peso daquelas palavras não saiu.

Kael ainda me encarava sentado no sofá, o rosto sereno apesar da luta intensa que tivera horas antes, as bandagens em seu ombro já começavam a se manchar de vermelho. Eu engulo em seco ao perceber que ele não devia estar ali. Nenhum de nós devia.

Me levantei, tentando ignorar o aperto no peito e o olhar dele que queimava por respostas, Mas quando fui pegar um copo de água, ouvi:

- Lyris...

A voz de Kael. Baixa. Quebrada. Era a voz dele soando no meu apartamento, mas não era ele quem falava, eram as minhas memórias. A sua voz em nossa primeira vida, as lembranças dolorosas que apenas eu parecia ouvir.

- Você prometeu... - ouço outro sussurro, e o meu rosto contrai... Todas as lembranças querendo me engolir de vez.

E então, como se algo quebrasse dentro de mim, o meu corpo se arqueou, soltei um grito abafado, um soluço engasgado quando de repente minha memória me levou diretamente para aquela outra vida.

Uma floresta cinzenta, céu rachado por relâmpagos vermelhos. Eu corria. Sangue nas mãos. Atrás de mim, Kael em sua forma final. Uma fera. Ele gritava meu nome, mas não era ele. Era o monstro que haviam feito dele.

- Eu te amo! Mesmo assim! Mesmo assim! - eu gritei. Ele hesitou. Por um segundo, seu olhar voltou a ser humano.

Foi a brecha.

Eu me lancei em frente ao feitiço. Eu me sacrifiquei. Pela única coisa que sempre acreditei que valia a pena: ele.

E ele caiu de joelhos ao meu lado. Gritando meu nome quando já era tarde.

Quando finalmente o peso daquele flash, daquela memória liberta meus pensamentos, voltei à sala. Meu corpo inteiro ainda tremia.

"Quantas vezes mais eu vou ter que morrer por você?" murmurei para mim mesma, enquanto ainda o observava dormir.

Até que, de modo abrupto, Kael abre os olhos ofegante, sentando-se no sofá com os olhos arregalados.

- Eu... vi você. - Ele diz. Fiquei imóvel. - Você estava... caindo. E eu não consegui salvar. - Ele segurou a cabeça. - Isso não foi um sonho. Foi real. Foi real, não foi?

Me aproximei devagar. Minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia:

- Não devia estar acontecendo tão cedo.

- O quê?

- Nada. - Olhei pra ele. E menti. - Foi só um pesadelo.

Ele me encarou. Sabia que eu estava mentindo. Mas não disse nada. E isso me assustou ainda mais.

***

Mais tarde, quando ele já havia descansado e seu ombro já havia parado de latejar, saímos. Precisávamos sair. Respirar. Pensar.

Andamos em silêncio pela cidade abafada. Eu tentava me convencer de que aquilo ainda era minha vida. Mas não era. Era uma guerra. E foi quando atravessávamos a rua que senti. Algo observando.

Olhei para trás. E vi.

Um homem. Alto, de terno escuro, parado sob um poste. Olhos como vidro estilhaçado. Um sussurro no vento:

- O ciclo não gosta de ser quebrado, Lyris. -sua voz ecoa.

Engoli em seco. Kael nem percebeu. Mas eu sabia. Ele era um Guardião. A voz dele, fria e suave, ecoou em minha mente como uma lâmina gelada:

- Ele já está lembrando. E você está mais vulnerável do que nunca. Está pronta para morrer... mais uma vez?

E não havia mais volta.

            
            

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