- Obrigada. - A palavra saiu curta, dura. Por dentro, meu peito se apertou entre gratidão e medo.
- Posso te acompanhar até em casa? Tá escuro. - A preocupação nos olhos dele era sincera, e isso me irritou mais do que qualquer ameaça.
- Não precisa. Eu conheço o caminho. - Dei as costas e comecei a andar.
Os passos dele vieram logo atrás, sem pressa.
- Não sabe escutar um "não"? - perguntei, sem olhar.
- Escuto. Só que às vezes a gente ignora o que ouve quando o corpo sente o oposto. - A resposta veio em voz baixa, quase confidência.
Parei, virei e encarei sua face na penumbra.
- Isso não é justo. Você não sabe o que arrisca.
- E se eu quiser arriscar? - ele sussurrou. - E se, mesmo sem lembrar, eu já estiver envolvido até o pescoço?
Um estrondo metálico cortou a rua, seco, violento, vindo de um beco lateral. Instinto o fez avançar antes que eu conseguisse pensar.
- Fica aqui. - ordenou, e vi quando as pontas dos dedos se curvaram, uma linha de tensão como se a carne pedisse a presença do lobo.
Eu devia ter ido embora. Deveria ter corrido. Mas algo me puxou na direção do som: curiosidade, medo, destino. Segui-o em silêncio.
No fundo do beco, sob um poste que cuspia luz amarelada, uma sombra se movia. Não era humano, ainda que lembrasse um homem: pele esticada demais, olhos como carvão, dedos alongados terminando em lâminas que refletiam a luz.
- Sai daqui, Lyris! - ele gritou. Mas a coisa já me vira. Um farejar cruel, atento.
Antes que eu pudesse recuar, Kael avançou. O corpo dele mudou: músculos inchando, coluna arqueando, garras surgindo com um som cortante. A transformação fora urgente e bela e aterradora.
O choque veio em movimento: garras contra lâminas. O ar estalava com o impacto. Uivos secos, golpes que faziam o metal tilintar. Eu me afastei, presa entre pavor e fascinação, vendo-o lutar como se cada investida fosse para me manter respirando.
E bem ali, uma guerra começara; a batalha de garras contra lâmina. Gritos abafados. O som seco de pancadas, de uivos.
Meu coração batia como um tambor. Eu queria fechar os olhos, mas não conseguia. Ele lutava por mim. Por alguém que ele nem lembrava direito. Ou talvez lembrasse demais
Num instante final de precisão, Kael perfurou o peito da coisa. Um grito que não era humano rasgou o ar; a figura retraiu-se e, num borrão, se dissolveu em algo mais frágil, um homem caído, olhos vazios.
Kael tornou forma humana aos trancos, caiu de joelhos, as mãos tremendo. Havia sangue no ombro, e o peito dele subia e descia rápido.
- Kael! - eu corri, sem pensar. Sangue escorria da ferida aberta. Seus olhos estavam turvos, desfocados.
- Você está bem? - perguntou, a voz rouca.
- Eu? Você está sangrando! - respondi, o mundo girando leve.
- Eu te protegi dessa vez. - murmurou ele, como se repetisse uma oração. - Não falhei.
Antes que ele pudesse dizer mais, o escuro levou-o e ele desmaiou.
***
Quando acordou, horas depois, ele se encontrou no sofá do meu apartamento, o ombro enfaixado, respiração lenta. Não tive escolha: trazê-lo ao hospital não era seguro depois do que vi; havia coisas sobre sangue e feridas que só eu reconhecia.
- Você me trouxe pra sua casa? - murmurou ele, abrindo os olhos devagar.
- Tinha escolha? - respondi seco.
Sorriu, pequeno e torto.
- Você é muito rígida.
Fitei-o.
- E você... o que é, Kael?
Silêncio. Finalmente:
- Pode soar loucura, mas juro: em meus sonhos eu juro te proteger. Em cada vida. Meu corpo lembra, meu coração também. Não me peça que finja que é coincidência.
Engoli em seco. Não havia como fugir daquilo.
- Lyris - ele sussurrou em seguida -... o que nós somos?
- Uma história antiga demais pra ser contada com segurança.
- Mas eu quero ouvir. - Ele se aproximou. - Me conta. Ou me mostra.
E então, por um segundo, pensei em ceder. Em tocá-lo. Em contar tudo. Mas o celular tocou.
A tela tremeluzia no escuro da sala. O número não constava nos contatos.
Uma mensagem brilhava:
- Se ele lembrar tudo, você morre primeiro.
Li a frase como se tivesse recebido uma estocada. Deletei, num gesto tão absurdo quanto inútil: apagar não mudava o significado. O aviso ficou gravado na pele.
Kael me observava, as bandagens já manchando de vermelho. Não devia estar ali. Nenhum de nós devia. E ainda assim, ele olhou para mim com algo que parecia medo e promessa ao mesmo tempo.
E ali, naquela sala com cheiro de sangue, passado e promessas quebradas... eu soube.
Não era o destino que nos empurrava.
Era a maldição.
A mensagem ainda brilhava na tela do celular como um presságio cruel: "Se ele lembrar tudo, você morre primeiro." Deletei. Mas o peso daquelas palavras não saiu.
Kael ainda me encarava sentado no sofá, o rosto sereno apesar da luta intensa que tivera horas antes, as bandagens em seu ombro já começavam a se manchar de vermelho. Eu engulo em seco ao perceber que ele não devia estar ali. Nenhum de nós devia.
Me levantei, tentando ignorar o aperto no peito e o olhar dele que queimava por respostas, Mas quando fui pegar um copo de água, ouvi:
- Lyris...
A voz de Kael. Baixa. Quebrada. Era a voz dele soando no meu apartamento, mas não era ele quem falava, eram as minhas memórias. A sua voz em nossa primeira vida, as lembranças dolorosas que apenas eu parecia ouvir.
- Você prometeu... - ouço outro sussurro, e o meu rosto contrai... Todas as lembranças querendo me engolir de vez.
E então, como se algo quebrasse dentro de mim, o meu corpo se arqueou, soltei um grito abafado, um soluço engasgado quando de repente minha memória me levou diretamente para aquela outra vida.
Uma floresta cinzenta, céu rachado por relâmpagos vermelhos. Eu corria. Sangue nas mãos. Atrás de mim, Kael em sua forma final. Uma fera. Ele gritava meu nome, mas não era ele. Era o monstro que haviam feito dele.
- Eu te amo! Mesmo assim! Mesmo assim! - eu gritei. Ele hesitou. Por um segundo, seu olhar voltou a ser humano.
Foi a brecha.
Eu me lancei em frente ao feitiço. Eu me sacrifiquei. Pela única coisa que sempre acreditei que valia a pena: ele.
E ele caiu de joelhos ao meu lado. Gritando meu nome quando já era tarde.
Quando finalmente o peso daquele flash, daquela memória liberta meus pensamentos, voltei à sala. Meu corpo inteiro ainda tremia.
"Quantas vezes mais eu vou ter que morrer por você?" murmurei para mim mesma, enquanto ainda o observava dormir.
Até que, de modo abrupto, Kael abre os olhos ofegante, sentando-se no sofá com os olhos arregalados.
- Eu... vi você. - A voz saiu atropelada. - Você estava caindo. E eu não consegui salvar. Não foi sonho. Foi real. Foi real, não foi?
Aproximou-se cauteloso, a face marcada pelo cansaço.
- Não devia estar acontecendo tão cedo - respondi, tentando desviar. - Foi só um pesadelo.
Ele me fitou como se soubesse que eu mentia. E isso doeu mais do que qualquer lâmina.
Mais tarde, quando ele já havia descansado e seu ombro já havia parado de latejar, saímos. Precisávamos sair. Respirar. Pensar.
Andamos em silêncio pela cidade abafada. Eu tentava me convencer de que aquilo ainda era minha vida. Mas não era. Era uma guerra. E foi quando atravessávamos a rua que senti. Algo observando.
Olhei para trás. E vi.
Um homem. Alto, de terno escuro, parado sob um poste. Olhos como vidro estilhaçado. Um sussurro no vento:
- O ciclo não gosta de ser quebrado, Lyris. -sua voz ecoa.
Engoli em seco. Kael nem percebeu. Mas eu sabia. Ele era um Guardião. A voz dele, fria e suave, ecoou em minha mente como uma lâmina gelada:
- Ele já está lembrando. E você está mais vulnerável do que nunca. Está pronta para morrer... mais uma vez?
E não havia mais volta.