Meu corpo inteiro protestava. Cada centímetro gritava para que eu fugisse, mas meus pés... meus pés estavam enraizados ali.
Virei a cafeteira como se aquilo fosse uma coreografia ensaiada: gesto, pausa, servir.
A alça quase me escorregou quando senti o olhar dele nas costas, pesado como chumbo.
O café pingou no pires; eu não percebi até estar diante dele.
- Você trabalha aqui há muito tempo? - ele perguntou, casual, mas os olhos não sorriam.
- Só o suficiente pra saber que a maioria das pessoas que entram aqui não tem sonhos com estranhas - retruquei, deslizando a xícara para ele.
- Você não é uma estranha - ele respondeu de imediato, pegando a xícara com mãos firmes, grandes. - Eu sei disso. E você sabe disso também.
O som do sino da porta me salvou da resposta. Uma senhora entrou, acenou, sentou-se ao fundo. Tentei me ocupar, respirar. Mas ele não foi embora. Kael ficou.
Minutos passaram em silêncio tenso. Ele observava tudo - os clientes, os gestos mecânicos que eu fazia, os olhares que desviava. Eu sentia seu cheiro mesmo à distância. Madeira, vento e... lobo. Ele era um alfa. Isso me consumia de dentro pra fora.
Até que de repente, algo inesperado aconteceu. Um grito. Seguido de uma batida surda e o som da senhora do fundo caindo ao chão.
- Senhora Alzira! - gritei, correndo até ela. Estava pálida, os olhos virando, a respiração curta. - Chama uma ambulância! - gritei para a colega do caixa, já ajoelhada ao lado da cliente.
Mas Kael se adiantou.
- Me dá espaço - pediu com firmeza.
Ele tirou o casaco, ergueu a cabeça da senhora com cuidado. Os olhos estavam diferentes. Atentos. Experientes.
- Você sabe o que está fazendo? - perguntei, desconfiada.
- Sei. Já vi isso antes. É uma crise de hipoglicemia grave. Ela precisa de açúcar imediatamente. Tem mel ou refrigerante? Qualquer coisa doce?
Corri até o balcão, peguei uma garrafinha esquecida na geladeira e voltei. Ele levantou o rosto, e nossos olhos se cruzaram ali, em meio ao caos.
- Confia em mim - disse. E pela primeira vez, não soou como um pedido. Era um laço antigo se reconhecendo no presente.
Entreguei o refrigerante. Ele administrou com cuidado, murmurando palavras baixas. Na última vida, ele me entregou aos Caçadores sem hesitar. Agora... ele segura uma senhora com cuidado, como se qualquer vida fosse sagrada.
Pouco depois, a senhora tossiu. E então respirou. E foi no mesmo momento em que a ambulância chegou e a levaram, consciente. Agradecida.
Eu ainda estava parada no mesmo lugar, em choque, observando o automóvel se afastar, sentindo a presença de Kael bem ao meu lado.
- Você... salvou ela - sussurrei.
- Eu tento não deixar as pessoas morrerem - disse ele, com aquele mesmo sorriso triste de antes. - Mas você... você sempre foge antes.
Não respondi. Não tinha resposta. Sabia que ele se referia ao seu sonho, mas acima de tudo, sabia que aquilo também era de fato, uma realidade.
A lanchonete se esvaziou devagar após o incidente. A outra garçonete foi atrás dos paramédicos, esperando por notícias. Enquanto isso, ficamos sozinhos. Só eu, ele, e o silêncio que rugia como fera.
- Por que está me seguindo? - perguntei por fim. - O que você quer?
- Eu quero entender. Esses sonhos. Essas lembranças que eu nem deveria ter. Quero saber por que, toda vez que te vejo, meu peito aperta como se tivesse te perdido mil vezes.
Virei o rosto, contendo as lágrimas.
- Você nunca me teve para perder. - Rebato, mesmo sabendo que aquilo não era verdade, em todas as vidas, eu era dele.
- Lyris... o que você é? - Mesmo assim, Kael insistiu.
A pergunta soou pequena e enorme ao mesmo tempo. Respirei.
- Sou o erro. - Minha voz ficou fina. - O erro que você repetirá.
Quando aquelas palavras saíram dos meus lábios, ele se aproximou, apenas um passo. Mas eu recuei dois.
- Não faz isso. Não vem mais perto.
- Por que você me teme tanto? - ele murmurou. - Eu nunca faria mal a você.
Olhei dentro dos olhos dele. Azuis. Intactos. Cheios de dor e ternura. E menti.
- Porque você já fez.
O ar se partiu entre nós.
Ele engoliu em seco, confuso. A respiração pesada. Mas não forçou. Dessa vez, apenas assentiu, como se alguma parte dele acreditasse. Como se uma memória esquecida latejasse na carne.
Ele recuou, os olhos ainda cravados em mim
- Eu não vou desistir, Lyris - disse ele, caminhando até a porta. - Se existe algo entre nós, eu vou descobrir. E você também.
A voz dele ficou colada à porta quando a abriu. O ar que vinha com ele era menos pesado agora; o espaço que ele deixava era enorme, frio. Fechei os dedos no balcão como se pudesse segurar o som da saída dele.
Quando a porta bateu, tudo voltou a ser normal, as xícaras tilintando, o café esquentando de novo e eu percebi que o mundo comum não sabia o que tinha presenciado. Só eu sabia: Kael Noctis havia me olhado como quem reconhece uma ferida. E essa ferida poderia me matar, de novo.
Kael Noctis. Meu assassino. Meu salvador. Meu destino. Outra vez.