Ela começa a se afastar, andando de costas, até sem perceber, esbarrar sobre o peito de Kael. Ela se vira rapidamente para ele, o coração acelerado, os lábios entreabertos. E exatamente como a conexão de alma que ambos possuíam: Kael a enxerga intimamente.
- Lyris... - ele murmura, os olhos escuros preso em seu rosto, observando cada detalhe. - O que aconteceu? Por que está tão assustada?
Lyris sabe que Kael não pode ver o guardião, que ele não poderia sequer imaginar o quão terrível aquela entidade poderia ser. Ela abre os lábios, deseja compartilhar aquilo com ele, dividir o peso em seu peito, no entanto, quando Lyris levanta os olhos para o encarar, sua respiração para.
Ela olha o ombro de Kael e vê o sangue que agora começava a juntar com mais precisão. O desespero toma conta do seu corpo, porque ela sabe que quanto mais tempo passar ao seu lado, o quão mais rápido ele estiver de se lembrar, a sua vida corria perigo.
E Lyris sempre iria escolher se sacrificar para salvar a vida dele e é exatamente isso que ela faz: Lyris corre.
Ela precisa fugir de Kael, daquela cidade. Mas de alguma maneira, ela já sabia que tudo aquilo era inútil.
- Lyris, espera! - ela ouve a voz de Kael, e logo em seguida, escuta seus passos atrás dela.
Ele corre em sua direção. Corre para ela.
Corre para morte.
- Por favor, me deixe em paz! - gritou, a voz quebrando no ar.
Correu sem olhar para onde pisava, as lágrimas embaralhando sua visão. Só percebeu o erro quando o salto da bota prendeu na fenda da calçada. O mundo girou rápido demais. O chão vinha de encontro a ela, mas antes que pudesse sentir o impacto, braços fortes a envolveram no último instante. Ainda assim, a dor latejou nos joelhos, um corte fundo rasgando a pele.
Ela grita e Kael toma um impulso ainda maior para pular em sua direção e evitar sua queda. Ele consegue, mas de modo ainda parcial. Porque assim que encontra Lyris e a toma sobre seus braços, ele percebe o corte profundo em seus joelhos.
- Merda! - Lyris choraminga e tenta esconder o rosto, o seu peito queimando mais que os seus joelhos, agora rasgados.
Kael está sentado no meio daquela calçada, o corpo de Lyris bem aconchegado pelo seu, a protegendo. Carinhosamente, ele afasta os fios de seus longos cabelos escuros de frente do seu rosto.
- Por que fez isso? Por que insiste em fugir de mim? - ele pergunta.
Lyris engole em seco e apenas balança a cabeça; não há o que responder. Ela sabe que precisava fugir dele, mas de algum modo, estando presa em seu corpo como estava naquele momento, era exatamente onde ela queria estar.
- O que está acontecendo com seu sangue? - de repente, a voz de Kael passa a soar inquisitiva.
Kael a segurava contra si, o olhar preocupado, até que seu rosto endureceu.
- Seu sangue... - murmurou, incrédulo.
Lyris seguiu o olhar e o coração disparou. O vermelho vivo que deveria escorrer dos cortes havia desaparecido. No lugar, um líquido cintilante, azul-índigo, pulsava como se tivesse vida própria. A luz da lua fazia cada gota brilhar em faíscas, espalhando reflexos ao redor. O ar cheirava a ferro misturado com ozônio. Kael, sem perceber, estendeu a mão como se fosse irresistível tocar aquele brilho proibido.
- Eu... - ela tenta explicar, mas não havia explicações. Não sem precisar conta toda a história da sua vida desde o seu começo.
Aquilo tudo era sinal de que a maldição estava instável, que algo não estava como usualmente como costumava ser. Talvez o fato de Lyris ainda estar agarrada a Kael fosse mais um agravante.
Ela então começa a se afastar e tenta se levantar com dificuldade. Kael apenas a assiste, a observa, enquanto sua mente apenas gira com mais confusão do que antes. Se fosse possível, quanto mais ele conhecia dela, menos ele sabia.
E por isso, ele pergunta:
- O que é você, Lyris? Sei que não é uma loba. Mas também sei que não pode ser uma humana.
Lyris engole em seco, ficando finalmente de pé, e limpando sujeira invisível em seu casaco.
- Não sou nada, Kael. Sou apenas alguém comum.
- Comum? - ele solta uma risada sem humor algum. - Você viu o que tentou ataca-la mais cedo, aquele lobo com olhos pretos? Ninguém comum é perseguido por um Guardião do Ciclo!
- O quê? - Lyris arfa e dá um passo para trás, completamente surpresa e em choque. - Como... Como você sabe que era um Guardião do Ciclo?
Kael então se levanta e com a expressão completamente diferente de tudo que Lyris já vira dele antes, ele profere seriamente:
- Isso é a prova que eu também sei mais do que você pensa. - ele diz enquanto se aproxima dela, seus rostos estão tão pertos que ela quase pode sentir o seu gosto, o hálito quente queimando sua pele. O corpo de Lyris enrijece. - Então, Lyris, você vai me dizer o que você é? - ele pergunta, por fim.
Ela engole em seco, ainda que seus olhos, nesse momento, estejam presos nos lábios dele e na proximidade absurdamente magnifica do seu rosto contra o dela.
- Eu já disse que eu não sou nada, Kael. Eu sou ninguém.
Kael respira lentamente e leva sua mão até os cabelos de Lyris, e guarda seus fios atrás da orelha.
- Bom, então você não me dá mais nenhuma opção.
- O que quer dizer? - Lyris pergunta genuinamente confusa.
- Quer dizer que você vem comigo.
O coração dela disparou. Parte sua queria gritar. Outra... queria ficar exatamente onde estava
E antes que Lyris pudesse reagir, uma bolha enorme cobre os dois, uma ventania beirando a uma iminente invernia passa a girar ao redor, seus cabelos voando para todos os lados. Ela grita e agarra o corpo de Kael, buscando se proteger no meio da sua confusão.
Kael aproximou-se tanto que o hálito quente queimava a pele de Lyris. Seus dedos afastaram os fios de cabelo dela, guardando-os atrás da orelha.
- Se você não vai me contar o que é... - sua voz saiu baixa, grave - então só me resta uma opção.
- O quê? - Lyris quase não conseguiu respirar.
Ele sorriu. Mas era um sorriso perigoso.
- Levar você para onde ninguém mais pode te tocar. Para minha matilha.
Antes que Lyris pudesse protestar, o ar ao redor deles explodiu em vento. Uma esfera de energia os envolveu, fazendo seus cabelos chicotearem contra o rosto. Ela gritou e agarrou Kael com força, sentindo o coração dele bater contra o dela.
- Você está louco! Eu não vou com você!
- Desde quando você tem escolha? - ele respondeu, e então o mundo inteiro pareceu se desprender do chão.