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Eu estava flutuando em um espaço escuro e quente. Havia uma dor surda e latejante em algum lugar distante.
Vi André. Ele era mais jovem, na faculdade. Fomos pegos em um incêndio na festa de um amigo. A fumaça era densa, nos sufocando. Ele havia agarrado minha mão, seu aperto como aço.
"Vou te tirar daqui, Júlia!", ele havia gritado por cima do rugido das chamas.
Uma viga em chamas havia caído, e ele se jogou sobre mim, recebendo o golpe nas costas. Ele havia gritado de dor, mas nunca soltou minha mão.
Ele me carregou para fora daquele prédio em chamas. Mais tarde, no hospital, com as costas cobertas de bandagens, ele olhou para mim e disse: "Contanto que você esteja segura, nada mais importa."
Esse foi o homem por quem me apaixonei. O homem que me protegeria de uma viga em chamas.
A memória se dissolveu. A dor em minhas mãos se aguçou, me puxando de volta ao presente. O homem que me protegeria de uma viga em chamas tinha acabado de deixar um equipamento de iluminação cair sobre mim.
Abri os olhos. Eu estava em um quarto de hospital. O cheiro de antisséptico enchia minhas narinas.
André estava sentado ao lado da minha cama, com a cabeça entre as mãos. Ele ergueu o olhar quando me ouviu mexer.
"Júlia," ele disse, com a voz embargada de emoção. "Você acordou."
Ele tentou pegar minhas mãos, mas elas estavam envoltas em bandagens grossas.
Uma enfermeira entrou, sorrindo radiante. "Oh, que bom, você acordou. Seu marido estava tão preocupado. Ele não saiu do seu lado."
Ela verificou meus sinais vitais.
"Você é uma mulher de muita sorte," ela disse. "O Sr. Mendonça tirou você e a outra convidada de lá tão rápido."
"Outra convidada?", perguntei, com a voz rouca.
"Sim, a outra mulher que se machucou. Anabela. Ele a carregou para fora primeiro, depois voltou para buscar você. Um verdadeiro herói."
Ele a salvou primeiro.
As palavras me atingiram com a força de um golpe físico. Em um momento de vida ou morte, ele a escolheu. Eu fui uma segunda opção.
O último pedaço do meu coração partido virou pó.
"Eu não entendo," eu disse, olhando para ele. Minha voz estava perigosamente calma. "Eu pensei que eu era sua esposa."
André se encolheu. A enfermeira parecia confusa.
"Oh, não, querida," disse a enfermeira, rindo levemente. "A Sra. Mendonça - Anabela - esteve aqui mais cedo. Ela acabou de sair para ver o bebê deles. Uma verdadeira guerreira, aquela."
André se levantou de um salto, derrubando um copo d'água. Ele se estilhaçou no chão. A enfermeira se calou, intimidada por sua fúria repentina.
O som do vidro quebrando limpou a névoa em minha cabeça. Lembrei-me de tudo. A grua sabotada. O rosto arrogante de Anabela. André gritando o nome dela.
Ele a salvando primeiro.
Olhei para ele, meus olhos frios e claros.
"O que ela quis dizer, André?", perguntei. "A esposa dele, Anabela."
"Ela está confusa, Júlia," ele disse, com a voz suplicante. "Ela não sabe do que está falando."
Ele tentou pegar minha mão enfaixada novamente.
"Eu acredito em você," eu disse suavemente.
A luta se esvaiu dele. Ele relaxou visivelmente, o alívio tomando conta de seu rosto. Ele pensou que tinha se livrado da bala. Ele não percebeu que a bala já tinha atravessado meu coração e não havia mais nada para salvar.
"Estou cansada," eu disse, fechando os olhos. "Quero dormir."
Ele pareceu em pânico com a minha calma. Ele sabia que algo estava errado, fundamentalmente errado. Começou a se desculpar, a prometer que consertaria tudo.
Eu não ouvi. Apenas virei o rosto para a parede.
Ele foi chamado por um médico alguns minutos depois. Assim que ele saiu, meus olhos se abriram de repente. Não havia mais lágrimas para chorar.
Meu coração estava morto.
Tateei em busca do meu celular com as mãos enfaixadas. Enviei uma mensagem para o advogado que Caio havia encontrado para mim.
*Ele está aqui. Estou pronta para entrar com o processo.*
Então enviei outra mensagem para Caio.
*Consiga a certidão de casamento. A verdadeira. André Mendonça e Anabela Ferraz.*
As respostas chegaram em minutos.
*Estou cuidando disso.*, do advogado.
E de Caio: *Eu já tenho. Vou te enviar.*
Um momento depois, um arquivo apareceu no meu celular. Era uma cópia digital de uma certidão de casamento. Emitida há sete anos. Os nomes nela eram André Mendonça e Anabela Ferraz.
Então, meu casamento de cinco anos era uma mentira. Nosso casamento, a cerimônia linda, os votos que trocamos... tudo foi uma performance. Uma farsa.
Eu não era apenas a outra mulher. Eu era uma tola.
Um som escapou dos meus lábios, uma coisa estrangulada e quebrada. Eu pensei que sabia o que era dor. Eu estava errada. Esta era uma nova dimensão de agonia.
Todo o planejamento cuidadoso, a necessidade de uma fuga silenciosa - tudo evaporou diante daquele fato único e condenatório. Sete anos. Minha cautela era uma piada. Minha vida era uma piada. Eu não queria mais um plano. Eu queria ver a expressão no rosto dele quando ele soubesse que eu sabia de tudo.
Lutei para sair da cama, minhas mãos gritando em protesto. Eu não me importava. Vesti minhas roupas, meus movimentos desajeitados e estranhos.
Eu tinha que confrontá-lo.
Encontrei-o na lanchonete do hospital, falando ao telefone. Fui direto até ele e enfiei meu celular na cara dele, a certidão de casamento brilhando na tela.
"Sete anos, André," eu disse, minha voz tremendo com uma raiva que era aterrorizante em sua intensidade. "Nossa vida inteira juntos, você já era casado."
Ele olhou para a tela, e toda a cor sumiu de seu rosto. Ele olhou para mim, seus olhos arregalados de pânico.
"Júlia, eu posso explicar..."
"Estou me divorciando de você," eu disse, com a voz vazia. "Ou, bem, acho que não posso, não é? Já que nunca fomos legalmente casados."
Arranquei o celular da mão dele e disquei o número de Caio.
"Estou deixando ele, Caio. Venha me buscar."
Antes que Caio pudesse responder, André avançou. Ele arrancou o celular da minha mão e o espatifou contra a parede. Ele se quebrou em uma dúzia de pedaços.
Eu o encarei, chocada. Nunca tinha visto esse lado dele. Seu rosto era uma máscara de fúria, seus olhos selvagens e possessivos.
"Você não vai embora," ele sibilou, sua voz um rosnado baixo. "Você é minha. Você nunca, jamais, vai me deixar."
Ele agarrou meu braço, seus dedos cravando na minha carne. Tentei me soltar, mas ele era forte demais. Ele me arrastou para fora da lanchonete, ignorando os olhares das outras pessoas.
Gritei por ajuda, mas ninguém se moveu. Provavelmente pensaram que era uma briga de casal.
Ele me empurrou para dentro de seu carro e trancou as portas. Entrou no lado do motorista e se virou para mim, seus olhos queimando com uma luz aterrorizante.
"Você quer me deixar, Júlia?", ele disse, sua voz perigosamente suave. "Vou te mostrar o que acontece quando você tenta me deixar."
Ele ligou o carro e dirigiu, não em direção à nossa casa, mas em direção ao novo estúdio. Em direção à jaula que ele havia construído para mim.
Percebi então que o homem que eu amava tinha desaparecido. Em seu lugar havia um monstro. E eu estava presa com ele.