A noite cai sobre Moscou como um véu de ferro. O frio corta a pele, mas não me incomoda. Estou em pé no pátio da mansão, o casaco escuro fechado até o colarinho, enquanto os motores dos carros rugem prontos para a escolta. O plano de segurança é simples: três veículos. O meu no centro. Um à frente, outro atrás. Troca de placas em menos de cinco minutos após deixar a rua principal. Drones monitorando o trajeto. Atiradores posicionados em pontos altos do bairro. Nenhum imprevisto.
Sergey se aproxima. Ombros largos, olhar de aço. Diferente dos outros, ele não precisa forçar postura. Crescemos juntos. Ele sabe quando falar, quando calar.
Sergey: Rota limpa. Drones reportam trânsito normal. Dois curiosos na esquina do prédio dela, mas já dispersamos.
Assinto. Não preciso de relatórios longos. Apenas resultados.
Mikhail: Vamos.
Entramos no carro. O vidro blindado reflete meu rosto duro, olhos fixos no escuro da cidade. O motor desliza pelas ruas como uma fera silenciosa. Moscou não dorme, mas hoje ela se curva. O comboio avança sem pressa e sem ruído.
No bolso interno do paletó, carrego a joia da noite: não é arma, nem contrato, nem carta cifrada. É a decisão que muda o tabuleiro. Hoje, Luísa Andrade será apresentada como minha noiva. Oficialmente. Irrevogavelmente.
Chegamos à rua estreita do prédio dela. O comboio desacelera. O carro da frente bloqueia a passagem, o de trás fecha a rua. Vizinhos curiosos são mantidos atrás das janelas por homens discretos vestidos como técnicos de manutenção.
Desço. O frio russo me morde, mas eu só sinto o peso da hora. Subo os degraus do prédio. O porteiro já foi instruído. Me cumprimenta com um aceno trêmulo, olhos baixos.
Bato na porta 302. Dois toques firmes.
Ela abre.
E pela primeira vez em muito tempo, eu paro.
Luísa está ali, em pé, com o vestido vermelho que mandei. A cor acende sua pele como fogo em neve. O corte simples a transforma em algo que nenhuma rainha conseguiria imitar: autenticidade. O cabelo preso em um coque improvisado, alguns fios soltos moldando o rosto. Ela não se preparou para me impressionar, mas conseguiu.
Mikhail: Vermelho combina com você.
Seus olhos queimam contra os meus. Não agradece. Não sorri. Apenas segura o olhar, como se pudesse me desafiar sem palavras.
Ela pega uma pequena bolsa, coloca os documentos dentro e passa por mim.
Luísa: Vamos acabar logo com isso.
Ela caminha à frente, firme, sem olhar para trás. Sigo seus passos. Cada andar descido parece ecoar um pacto invisível.
No carro, ela senta ao meu lado. O silêncio pesa, mas não é desconforto. É guerra fria. O vestido vermelho ilumina o interior escuro do veículo. Eu a observo de relance. Não porque quero - mas porque o instinto não me permite ignorá-la.
Mikhail: Está preparada?
Luísa: Preparada para quê? Para ser exposta como um troféu?
Mikhail: Não. Para ser reconhecida como Orlov.
Ela ri, seca.
Luísa: Ainda não sou.
Mikhail: Em Dois dias, será.
Ela vira o rosto para a janela. Não discute mais. Às vezes, silêncio é mais perigoso que grito.
Chegamos ao salão escolhido para o evento. Uma antiga mansão reformada, no coração de Moscou. Fachada iluminada, bandeiras discretas, homens em ternos escuros posicionados em cada canto. Nada de ostentação vulgar: apenas poder silencioso.
O comboio para diante da escadaria. Desço primeiro. Ofereço o braço. Ela hesita por um instante, mas aceita. A mão dela pousa no meu braço com firmeza. Não é rendição. É decisão.
Subimos os degraus. Portas duplas se abrem. O salão de inverno brilha sob luz âmbar. Mesas longas cobertas de linho branco, taças alinhadas, flores claras. Ao fundo, piano e violoncelo executam notas baixas.
Todos se viram para nós.
O conselho já está presente. Viktor, Yakov, Gregor, Pavel, Miguel. E ali, de pé ao lado da mesa central, Kira Zaitseva. O vestido dourado dela parece pálido diante do vermelho de Luísa. O olhar é veneno puro.
Ao lado de Kira, seu pai: Yossef Zaitseva, queixo erguido, mãos fechadas em punho. Ele não fala, mas o silêncio dele é ameaça.
Eu conduzo Luísa até o centro do salão. Os murmúrios crescem, mas morrem quando ergo a mão. Sergey está parado atrás de mim, imóvel, mas sei que cada músculo dele está pronto para reagir.
Mikhail: Boa noite.
As vozes se calam.
Mikhail: Esta casa já viu alianças nascerem e morrerem. Já viu sangue correr para manter a Bratva de pé. Hoje, todos vieram esperando ouvir uma confirmação sobre meu noivado com Kira Zaitseva.
Olho diretamente para Kira. O veneno nos olhos dela tenta me cortar. Não consegue.
Mikhail: Esse noivado não existe mais.
Um murmúrio de choque atravessa o salão. Yossef dá um passo à frente, mas não abre a boca. Sabe que, se falar sem permissão, será lembrado de quem manda.
Mikhail: Houve um erro. Uma traição dentro de uma clínica. Uma falha que resultou em algo que ninguém aqui pode ignorar. Uma mulher carrega em seu ventre meu filho. O herdeiro Orlov.
Olhares se cruzam. Sussurros. Incredulidade.
Eu aperto o braço de Luísa levemente, conduzindo-a meio passo à frente.
Mikhail: Senhores... apresento a vocês Luísa Andrade.
Minha voz ecoa. O nome dela é cuspido no ar como sentença.
Mikhail: Em três dias, será minha esposa.
O impacto é imediato. Alguns capos desviam o olhar, outros arregalam os olhos. Kira dá um passo à frente, furiosa.
Kira: Você está louco, Mikhail! Vai jogar fora décadas de aliança da Bratva por causa de uma estrangeira? Uma desconhecida?!
Não me movo. Apenas a encaro.
Mikhail: Não é uma estrangeira. É a mãe do meu filho.
Kira: E você acha que isso é suficiente?
Mikhail: Para mim, é tudo.
O salão silencia. Não existe réplica quando eu falo assim.
Yossef finalmente abre a boca, a voz grave.
Yossef: Você está destruindo a confiança entre nossas famílias. Isso é uma afronta.
Dou um passo em direção a ele. Minha sombra cobre parte do rosto dele. Sergey se adianta meio passo, pronto para intervir se for preciso.
Mikhail: Eu não destruí nada. Vocês perderam relevância. E saibam: quem levantar a mão contra Luísa ou contra meu filho não estará desafiando um homem. Estará declarando guerra contra mim.
Meu tom não sobe. Não precisa. A ameaça se instala no sangue de cada um.
Pavel engole seco. Viktor baixa os olhos. Gregor mantém o rosto sério, mas não ousa abrir a boca.
Volto ao centro. Ergo a taça que estava à espera na mesa.
Mikhail: Brindem comigo. À nova era da Bratva. À minha futura esposa. À continuidade do nosso sangue.
Levanta-se um mar de taças, algumas firmes, outras hesitantes. Mas todas se erguem. Quem não ergueria?
Luísa continua de pé ao meu lado. Não fala nada, mas o vermelho do vestido dela já disse tudo. O mundo agora sabe.
E quando olho para ela, sei que fiz a escolha certa.
Não porque era conveniente. Não porque era esperado.
Mas porque, pela primeira vez em anos, alguma coisa em mim se moveu.
E dois dias vão ser suficientes para selar isso no altar no ferro, no fogo e no sangue.