Atravessei o saguão sem olhar para ninguém. Os empregados abaixaram os olhos, fingindo não ver a pressa com que subi as escadas. Mas eu sabia. Sabiam todos. O evento daquela noite não era segredo. O anúncio de Mikhail Orlov correria pela cidade mais rápido que pólvora.
Entrei no meu quarto e bati a porta com tanta força que os quadros tremeram. O ar me pareceu denso, sufocante. Arranquei os brincos e os joguei sobre a penteadeira. O som metálico foi pequeno demais para o tamanho da fúria dentro de mim.
Kira: Ele me expôs. Diante de todos. Como se eu fosse nada.
Caminhei de um lado para o outro, o vestido dourado se arrastando pelo tapete como uma lembrança de uma coroa arrancada. O reflexo no espelho mostrava uma mulher despenteada, com olhos úmidos, mas ainda assim orgulhosa. Eu não era qualquer uma. Eu era Kira Zaitseva. E Mikhail havia ousado me rebaixar diante de toda a Bratva.
O que queimava em mim não era tristeza. Era ódio. Ódio tão forte que o corpo não conseguia conter. Peguei um dos saltos dourados e o arremessei contra o espelho. O vidro trincou em dezenas de linhas, meu reflexo partido em pedaços.
Kira: Isso não vai ficar assim.
O som da porta abrindo me fez virar. Devagar, cuidadoso. Apenas uma pessoa ousaria entrar sem bater.
Yossef: Filha.
Meu pai. Erguido na porta como um general depois de uma batalha. A postura era firme, mas eu conhecia cada detalhe do rosto dele. O maxilar travado, os dedos rígidos ao lado do corpo, os olhos semicerrados. Ele estava tão furioso quanto eu, mas a fúria dele vinha disfarçada de cálculo.
Kira: Pai, ele me humilhou. Cancelou nosso acordo. Jogou fora o nome Zaitseva como se fosse pó.
Ele entrou com passos pesados, fechou a porta atrás de si e puxou a poltrona para se sentar diante de mim. Como fazia quando queria me ensinar algo.
Yossef: Eu vi. E me calei porque se eu falasse, talvez não tivesse saído de lá vivo.
Kira: E é isso? Vamos aceitar? Vamos deixar que uma mulher sem nome, sem história, sem sangue, sente no trono que deveria ser meu?
Ele me observou por longos segundos. Os olhos dele eram lâminas afiadas.
Yossef: Aceitar? Nunca. Mas precisamos de inteligência. Orlov não é qualquer inimigo. É mais do que um homem. É um império. Não se desafia um império de frente.
Aproximei-me, o vestido dourado ainda me sufocando, pesado, como se fosse feito de ferro.
Kira: Então o que vamos fazer?
Yossef: Você quer que ela pague?
Kira: Quero que desapareça. Que suma da face da terra. Antes do casamento. Antes de usar o vestido que ele ousou escolher para ela.
Yossef: Então vamos agir. Mas será do nosso jeito. Sem rastros. Sem escândalo.
Kira: Como?
Yossef: Acidente. Um carro que falha, uma estrada molhada, um pneu que estoura. Moscou é grande, e tragédias acontecem todos os dias.
Fechei os olhos e respirei fundo. A cena tomou forma dentro de mim como uma pintura cruel: ela, sozinha, capotando numa curva escura, o carro esmagado, o sangue escorrendo. O bebê dela o bebê dele, indo embora junto.
Um arrepio percorreu meu corpo. Mas não era medo. Era satisfação.
Kira: Quero que ela sinta medo antes. Quero que saiba que ousar ocupar o meu lugar tem um preço.
Yossef: Vai acontecer. Já tenho gente dentro da clínica. Eles podem conseguir rotas, horários, endereços. Ela não é intocável, por mais que Mikhail ache que sim.
Sentei na beira da cama, puxando o tecido dourado para os lados. O vestido se espalhou pelo tapete como ouro inútil.
Kira: Eu vou sorrir em público. Vou postar fotos, vou fingir que aceitei. Todos vão acreditar. Mas aqui dentro... eu vou esperar. Esperar a notícia.
Yossef: E quando ela se for, Mikhail vai lembrar de quem sempre esteve ao lado dele.
Kira: Eu. A única que nasceu para ser senhora Orlov.
Ele se levantou, ergueu o queixo e assentiu.
Yossef: Exatamente.
Ficamos em silêncio por alguns instantes. O relógio na parede marcava os segundos como punhaladas. Levantei devagar, caminhei até o espelho trincado. Toquei a rachadura com os dedos. Meu reflexo estava partido, mas ainda havia fogo nos olhos.
Kira: Ele pode ter escolhido vermelho para ela. Mas eu vou pintar Moscou inteira com o sangue dela, se for preciso.
Meu pai veio até mim. Colocou a mão pesada no meu ombro. A força dele me enraizou.
Yossef: Vermelho é a cor da guerra, filha. E nós sabemos lutar.
Fechei os olhos. O calor do ódio me envolvia como manto. Já não havia tristeza. Não havia vazio. Só a promessa da vingança.
Arranquei o vestido dourado do corpo, deixando-o cair no chão como pele morta. Fiquei apenas com a camisola leve, o frio da noite entrando pela janela aberta. Mas dentro de mim, queimava um incêndio.
Abracei meu pai. Pela primeira vez em anos, deixei que ele me segurasse. Não havia carinho ali, só a união de dois guerreiros que perderam uma batalha, mas ainda não a guerra.
Kira: Ela vai morrer, pai. Eu juro.
Yossef: Ela vai. E quando isso acontecer, Mikhail vai perceber que ninguém substitui uma Zaitseva.
Olhei para o espelho trincado mais uma vez. Vi uma rainha destronada. Mas não derrotada.
E prometi, para mim mesma e para o mundo: Luísa Andrade pode carregar o filho de Mikhail Orlov. Mas nunca chegará ao fim dessa gravidez.